2 de junho de 2011

SONHOS EM CELULOSE E CELULOIDE

BY THE CLASSICS - The Bystander foi criado como newsletter (não sabe o que é? Pergunte à sua mãe) para ser distribuído para amigos, num mundo pré-blog ou twitter, há muito tempo, quando os mamutes pastavam nas planíces. Como o acervo é grande, a idéia é selecionar alguns dos textos originais para a sua versão blog. Esse foi escrito na ocasião do início do novo milênio e recomendava uma graphic novel e uma série de filmes. O livro foi lançado esse ano, com o nome de SINAL E RUÍDO, pela editora Conrad, e, em 2009, os filmes foram reunidos em uma caixa de quatro DVDs da Versátil. O texto permanece sem atualizações corretivas, para manter o espírito da época. Uma década atrás. Os afetos permanecem. Viva Kris, Neil e Dave. Bom trabalho amigos!

THE BYSTANDER - 20 de Janeiro de 2001 - Numero 1 (Volume 2)

Sobrou um champanhe dessa ulti-ma virada. Vamos abrí-la? Enquanto nosso discreto mordomo Jarvis James cuida de selecionar as taças e gelar a bebida, esse By vai distraindo vocês falando de duas obras que merecem ser citadas nesse “overture” de século novo. São elas uma série de TV e uma graphic novel. Nenhuma delas é recente. Então por quê agora?



Sigam-me pelo corredor dos sonhos (thanks H.Ellison!) e vocês entenderão.


Primeiro a graphic novel: Em 1989, o escritor inglês Neil Gaiman era o nome mais importante do campo dos gibis, graças ao sucesso da revista em quadrinhos SANDMAN, onde uma mitologia fantástica, representada por uma família de seres eternos, encantava os leitores em histórias com fortes raízes literárias (sua fantasia sobre as possíveis “origens” da peça SONHO DE UMA NOITE DE VERAO, foi a primeira história em quadrinhos a ganhar o prêmio máximo do World Fantasy Award). Todo esse prestígio motivou a revista inglesa THE FACE a convidar Gaiman e o artista gráfico Dave McKean (responsável pelas magníficas capas da SANDMAN) para criarem uma história original que seria publicada em capítulos. Convite feito. Convite aceito.

O resultado foi SIGNAL TO NOISE.

A série teve boa repercussão do público e da crítica especializada em quadrinhos. Ficou por ai. Foi reunida em um único volume pela editora Dark Horse, em 1992. Vendeu sem grandes estardalhaços. E foi tudo.

Esse Bystander lamenta que SIGNAL TO NOISE tenha ficado uma obra tão obscura para um público maior. Porque é um trabalho e tanto. E muito pertinente para esse momento histórico. Senão, vejamos do que se trata:

Um prestigiado diretor de cinema de 60 anos, ganhador de prêmios como a palma de ouro do Festival de Cannes, tem uma idéia para o seu próximo filme: o Apocalipse, direcionando nossos olhos para o dia 31 de Dezembro de 999 DC, em uma pequena vila num lugar indeterminado na Europa, onde todos têm certeza de que o fim está próximo. Mostrar suas reações, seus dramas. Mostrar a humanidade diante de uma certeza devastadora. Nas mãos de um diretor perfeito como ele, uma futura obra-prima.

Mas …

Em uma visita ao médico (coisa que ele sempre detestou) para tratar de algo bobo, os exames revelam um tumor inoperável. Nosso diretor tem poucos meses de vida. Não haverá filme, pois nada foi sequer escrito. Uma depressão profunda se instala.

Porém …

Algo acontece. Automaticamente. Impulsivamente. Nosso diretor começa a escrever o roteiro. Sem arroubos dramáticos de afirmação da vida sobre a morte. Apenas uma obra lançada no papel. Onde o fim do mundo das pessoas naquela vila é confrontado com o fim da vida daquele artista que sabe que ninguém vai morrer naquela noite milenar. Somos colocados diante do Apocalipse de todos nós. Ou talvez não…

Sobre a noite de século-novo que ele não verá e sobre sua condição pessoal nesse mundo que se fragmenta, nosso diretor escreve: "Lá estarão milhares e milhares de pessoas. Todas rindo Todas gritando. Pegas na alegria de serem humanas. De estarem experimentando a vida naquele momento, sabendo que, se foram tão longe até ali, talvez haja esperança para se ir mais além! E eu não verei nada disso. Os críticos costumavam dizer que os meus filmes eram tristes. E eu concordava com eles. Mas agora já não tenho tanta certeza. Não sei. Vivemos em uma sociedade que guarda suas visões utópicas nos comercias de TV. Visões mágicas de um mundo hospitaleiro impossível. Povoado por pessoas atraentes com luzes nos olhos. Homens, mulheres e crianças. Onde ninguém morre. Onde tudo o que se precisa é um produto barato e fácil de conseguir: um pacote de amendoim salgado ou um limpador de tapetes a vapor. Tudo para trazer uma felicidade imediata e não diluída. Nos meus mundos as pessoas morriam e eu me achava honesto, achava que estava dizendo a verdade. Eu achava, mas eles eram atores e se fingiam de morto. E essa dor no meu peito é como um soco de raiva. Raiva pelo meu corpo me trair. Raiva pelo meu mundo, pelos meus sonhos e pela minha vida não seguirem pela eternidade. Raiva porque o melhor que eu podia ter criado ficou na minha cabeça. Tudo o que eu fiz de errado seria corrigido no próximo filme, que seria sempre o que eu faria melhor. Se eu tivesse tempo.”

E ele continua escrevendo o roteiro. Somos convidados a assistir um filme que jamais será feito, porque só existe na cabeça do seu moribundo criador, que observa sua parede coberta de fotos de desconhecidos, que se tornam as figuras principais nesse exercício da arte na mente. Escreve ele:

"Não acredito mais em Apocalipses. Acredito em Apocatástases. Acho que esse pode ser o título para o filme. É um nome problemático para ser pronunciado e quase ninguém sabe o que significa, mas de um jeito ou de outro, é um grande título! A palavra quer dizer: 1) Restauração, restabelecimento, renovação. 2) Retorno a uma condição prévia. 3) (astronomia) Retorno para a mesma posição aparente, complementação de um período de revolução. Gosto disso!"

O roteiro é finalizado e enviado para uma amiga. Nos momentos derradeiros da sua vida, nosso diretor é mandado direto para passar os últimos minutos de 999, ao lado dos habitantes da sua vila imaginaria porque “você deve sempre celebrar com quem você ama!”.

E o final esse By não conta, porque é visual demais, e tudo aqui é só cinqüenta por cento sem a arte fenomenal de Dave McKean. Mas SIGNAL TO NOISE ficou ribombando como um martelo na cabeça desse Bystander, durante essa virada de século.

Uma obra que fala de coisas que alguns gostariam de varrer para baixo de algum tapete, o que seria uma bobagem, pelo seu forte conteúdo poético. De fato, uma abordagem madura e singela sobre a questão da mortalidade (como se esse trabalho só tratasse disso) não chega a ser uma novidade para Gaiman, que criou uma das mais positivas e bonitas representações da morte, na figura de Death, a bela irmã de Dream (em SANDMAN). Humana, carinhosa e terrivelmente simpática, é dela o último sorriso que será visto.

Reforça-se: SIGNAL TO NOISE não é uma obra sobre morbidez. Muito pelo contrário. É sobre viver, criar, amar o próximo, descobrir os outros em nós e celebrar a nossa perplexa humanidade. Características que nos levam ao criador da nossa segunda obra: o diretor polonês Krzysztof Kieslowski.

Falecido por conseqüência de complicações cardíacas, no dia 13 de Março de 1996, Kieslowski poderia muito bem ser o cineasta da história de Gaiman. Relativamente popular, graças ao sucesso de filmes como A DUPLA VIDA DE VERONIQUE e a Trilogia das Cores (A LIBERDADE É AZUL; A IGUALDADE É BRANCA; A FRATERNIDADE É VERMELHA), Kieslowski tinha um olhar extremamente carinhoso sobre o ser humano. Impregnado de detalhes afetivos que reconheciam uma insuspeitada beleza em todos nós. Evidente que isso não era exclusivo dele. Outros diretores também possuíam esse carinho. Bergman, Antonioni, Fellini, De Sica, Wilder etc, Bergman ainda está vivo, assim como Antonioni e Wilder, mas o polonês mesclava uma melancolia com uma atitude redentora que era só dele. O Bystander gostaria de relembrá-lo nesse primeiro mês de milênio, recomendando a todos os leitores o que talvez seja a sua melhor obra: O DECÁLOGO. Dizia Kieslowski:

“O Decálogo é uma das principais fundações éticas da nossa sociedade. Todos estão mais ou menos familiarizados com os Dez Mandamentos, e concordam com eles, mas ninguém presta realmente atenção no que significam. E aí estava a minha proposta: esses filmes precisavam ser influenciados por cada mandamento na mesma medida em que cada mandamento influencia as nossas vidas diárias”.

Filmados para a TV polonesa em 1988, essa série de dez filmes procurava expressar cada um dos Dez Mandamentos como um paradoxo moral diante da complexa ética pessoal de cada indivíduo.

“Sempre procurei pensar em escalas pequenas, e é certo que jamais faria um filme de dimensões gigantescas ou globais. Isso não me interessa porque não acredito que a sociedade exista, ou que as nações existam. Acho que elas apenas estão por ai como um conceito. São 60 milhões de indivíduos franceses, ou 40 milhões de indivíduos poloneses, ou 65 milhões de indivíduos ingleses. Isso existe. Isso importa. Eles são indivíduos. Eles são pessoas.”

O desenho da trama do segundo decálogo serve de exemplo: Dorota, uma bela violinista (interpretada por Krystina Janda) começa a seguir de maneira incansável o médico que esta tratando do seu quase desenganado marido. Quer saber com certeza se ele vive ou morre. O medico insiste que um diagnóstico tão preciso é impossível. A perseguição prossegue até que uma estressada Dorota decide revelar ao médico o porque da sua angústia. Durante anos, ela e o esposo tentaram ter filhos, sem sucesso. Agora Dorota está enfim grávida, mas de um outro homem. E o dilema é: se o marido sobreviver ela abortaria a criança para não magoá-lo, mas se a morte for inevitável, ela não gostaria de perder o bebê.

Vida e morte dançam na sua cotidiana perplexidade.

“Para dizer a verdade, nos meus filmes, o amor está sempre em oposição aos elementos. Ele cria dilemas. Ele traz sofrimento. Nós não podemos viver com ele, e nós não podemos viver sem ele. Nos colocamos diante desse mistério: estamos sempre procurando por esse amor que nós vemos nos olhos das pessoas que sofrem por amor. O resultado é que ás vezes fica difícil conseguir finais felizes no meu trabalho”.

E o final do episódio descrito acima esse Bystander não conta, para não tirar o prazer de ninguém, mas, creiam-me, ele é surpreendente na sua delicadeza.

A série já foi exibida em cinematecas pelo país e teve uma exibição pública pela Rede Cultura há uns dez anos atrás (creio). Dois filmes que foram feitos para o cinema foram integrados aos oito roteiros originais e tiveram os seus 88 minutos editados para os 53 do formato de cada episódio. Esses dois foram exibidos nos cinemas daqui, sob os títulos de NÃO MATARÁS e NÃO AMARÁS. Alguém se lembra? Gostaram? Pois então pensem em cada um desses filmes multiplicados dez vezes.

Variando entre drama, tragédia, melodrama, comédia ou um simples passeio pelo bairro. Cada episódio é uma pequena jóia de se assistir. E esse Bystander tem o prazer de informar aos seus leitores que surgiu uma nova oportunidade de vê-los. Não é nenhum colosso em termos de acesso, pois é preciso ter um aparelho de DVD (área 1) e saber falar inglês ou polonês, mas isso também não é nenhuma impossibilidade. Mas é algo que merece ser celebrado por qualquer cinéfilo. Acaba de ser lançada, nos EUA, uma caixa com cinco DVDs contendo a série completa (pesquisem na Amazon). É uma boa chance de se levar, numa tacada, uma obra e tanto e poder testemunhar o talento farto de um diretor que, como o da história de Gaiman, tinha um afeto muito grande por cada um de nós.

“Ao acreditar demais na racionalidade, nossos contemporâneos perderam alguma coisa”, reclamava ele.

Os roteiros do DECALOGO foram reunidos em uma edição de 1991 da Faber & Faber, de Londres. Na introdução desse livro o diretor Stanley Kubrick escreveu:

“Eu sempre relutei muito em destacar um único trabalho de um grande cineasta, por achar que isso tende a simplificar ou minimizar o todo da sua obra. Mas, diante desse livro de roteiros feitos por Krzysztof Kieslowski e Krzysztof Piesiewicz, não fica impróprio observar como esses autores possuem essa rara habilidade de dramatizar suas idéias, em vez de apenas falar sobre elas. Fazendo isso, elas ganham um poder adicional de permitir que o público faça as suas próprias descobertas em vez de ser apenas manipulado até elas. E esses dois fazem isso com uma habilidade tão incrível, que você nunca percebe, até ser tarde demais, o quão profundamente elas atingiram o seu coração”.

A graça, talvez, esteja nos pequenos detalhes. O jornalista Christopher Marsh notou bem:

“Nos filmes de Kieslowski, até a coisa mais simples que é observada pela janela pode ter um conteúdo dramático. Talvez isso seja mais bem ilustrado se pegarmos a recorrente personagem da senhora idosa que tenta colocar uma garrafa de vidro no “container” de lixo reciclável, e o seu braço não alcança o topo. Ela apareceu nos últimos quatro filmes do diretor, e as reações dos seus personagens principais eram divergentes diante dessa triste e algo patética imagem, uma anciã tentando, com enorme dificuldade, realizar um simples gesto e criando respostas e emoções muito pessoais. Em A DUPLA VIDA DE VERÔNIQUE (1991), Veronika gostaria de ajudar, mas está fraca demais. Julie, em A LIBERDADE É AZUL, vive apenas no seu auto-isolamento e sequer percebe a situação. Karol Karol, em A IGUALDADE É BRANCA, já envolvido na preparação da sua grande vingança, acha tudo muito engraçado. Somente em A FRATERNIDADE É VERMELHA, surge Valentine, forte, generosa e com compaixão suficiente para um simples gesto de bondade, que é apenas ajudar essa pessoa estranha.”

SIGNAL TO NOISE e O DECÁLOGO. Dois trabalhos que possuem o sentimento que esse Bystander gostaria de compartilhar com todos os leitores. Pois se até mesmo um motorista de táxi for capaz de perceber os nossos sentimentos mais felizes, e ficar feliz por isso, essa bem que poderia ser uma cena de um filme de Kieslowski.

Ou Truffant.

Ou Jean Renoir.

Ou Marcel Carnê.

Ou… Mas ai esta nosso Jarvis James com a champanhe! Por favor, podem se servir!

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