17 de outubro de 2008

ACREDITANDO QUE O HOMEM PODE VOAR

(Dedicado ao meu pai. Que acreditava em heróis e foi o maior deles)

SUPERMAN – The Movie. O filme de 1978 sempre me pareceu o épico mais subestimado de uma década extraordinária. Ora, se os anos setenta nos forneceram uma cornucópia de qualidade cinéfila, como “O Poderoso Chefão”, “Taxi Driver”, “Operação França” etc, o filme de Richard Donner era observado apenas como uma aventura de super-herói, o que até era de fato. E apenas isso, certo? Mas, e se existisse algo mais para se observar? Com atenção se pode concluir que, nessa obra possuímos dois filmes. Esse raciocínio pode ser atestado por uma frase que o equaciona. Vamos a ela, junto com a cena que a contém:

Lex Luthor descobre, na sua enorme biblioteca, a existência da Kriptonita e, extasiado, joga a foto do meteorito verde para a sua assistente, Miss Theschmacher (a bela Valerie Perrine), que, embaraçada pela aparente burrice, replica: “Lex, sei que vou levar um tapa na boca, mas, e daí?”.

Um Gene Hackman, no melhor da sua forma, se senta e explica: “Miss Thescmacher, algumas pessoas lêem Guerra e Paz e acham que é apenas um romance de aventura. Outras lêem os componentes químicos de um chiclete de bola, escritos na embalagem, e começam a descobrir os fundamentos do universo!”.

A moça bem intencionada replica: “Mas, Lex, o que um chiclete de bola tem a ver com o universo?”.

Olhando para o teto, e buscando a paciência, o vilão finaliza: “Deixa para lá, Miss Thescmacher. Deixa para lá!”.

Bem, tudo em “Superman - The Movie” é estruturado nessa frase. O primeiro filme é uma excepcional (e, repetimos, subestimada) visão poética sobre a mortalidade. E o segundo é um divertido passatempo que reflete sobre o heroísmo de tentar ser um modesto humano que, eventualmente, pode voar e ter as balas ricocheteando no peito.

A morte é o principal motivo da existência do Super-Homem. A fé de seu pai, Jor-El, de preservar seu filho para a herança de um futuro melhor do que o orgulho dos seus pares, que condenaram seu planeta à destruição, ecoa simbolismos judaicos e cristãos (“esse é o meu filho, que eu mando para salvá-los”). Mas Jor-El é a esperança de que seu filho será o melhor de todos na Terra. Melhor, mais forte e altivo. O pequeno Karl-El acaba caindo no meio do Kansas e é recolhido por um casal caipira, que, mesmo o sabendo extraordinário, o educa para a mais banal das vidas no meio do interior americano. Ganha seu nome terráqueo, Clark Kent, e tem na figura do seu pai adotivo, Jonathan Kent (Glenn Ford) a inseminação do espírito humano, quando ele explica para ele: “Filho, você está aqui por um motivo. Não sei qual é, mas com certeza é mais do que apenas fazer gols num jogo de futebol!”. A frase inspira o rapaz que, logo em seguida, vê seu pai morrer de um infarto fulminante. Diz ele, duplamente órfão, para a mãe viúva: “Todos esses poderes. Essas coisas que eu posso fazer. E eu não pude salvá-lo”. Clark recebe a verdadeira lição do ser humano. Seja na Terra ou em Kripton.

Num prólogo para o segundo filme (o roteiro é impecável) Clark constrói sua fortaleza no ártico, graças a um cristal, legado pelo seu pai extraterrestre (quem reconhecer o mito de Excalibur, aqui, estará no caminho certo), e recebe sua educação para o super-heroísmo, ensinado pelo espírito vivo de Jor-El (nada mau ser educado por Marlon Brando. Afinal já se disse que só ele pode falar termos como “Fortaleza da Solidão”, e soar extremamente poético). Jor-El dá a ordem: “Não interfira na história humana”. Mensagem recebida. O Super-Homem está pronto.

O segundo filme (dentro do filme) é o mito da grandeza inocente desse herói de gibi (que comemora setenta anos de criação, nesse ano de 2008). O diretor demonstra que o segredo da personagem é, literalmente, a leveza. Chistopher Reeve cria uma interpretação que apresenta a magnificência do super-herói capaz de salvar o avião do presidente americano e em seguida fazer o ato compassivo de tirar o gato de uma criança de cima de uma árvore. E, logo após esse gesto, Donner acrescenta o detalhe cínico, e quase despercebido, do tapa que a menina leva em casa ao contar para a mãe que viu um homem voando. Pequenas correntes marcam o fato de que a motivação principal do Super-Homem é uma honesta bondade. “Você me pegou? Mas quem pegou você?”, pergunta uma chocada Lois Lane ao ser salva por ele.

Bem, o que segura o herói é o pacato Clark Kent. Ao contrário da análise de Tarantino, em “Kill Bill 2”, a identidade secreta de Kar-El não é um deboche, mas um elogio carinhoso ao humano, aparentemente fraco numa sociedade de categóricos vencedores. Esse tímido desastrado tem, dentro de si, alguém que pode voar e fazer diferença na vida das pessoas. Ok, não devemos pular pela janela, mas, e quanto ao resto?

Após muita diversão, após um Gene Hackman cheio de humor, e referências ao fascínio de flanar pelos céus tal qual Peter Pan (lembrando como o cinema pode ser o sonho mais extasiado), retornamos ao primeiro filme com o Super-Homem diante do corpo morto de Lois, que não era extremamente bonita, podia ser irritante, mas, às vezes, tinha uma atitude espevitada e moleca que falava ternura ao homem-menino do Kansas. O sofrimento devastador faz o herói, no meio de um grito ouvido em todo o planeta (quiçá, em todo o universo), dar um definitivo basta e se erguer aos céus para, diante dos fantasmas dos seus pais surgidos nas nuvens (alguém viu “Hamlet” aqui?) ouvir de Jor-El a proibição da superioridade sobre os humanos (“Não mude a história deles”. Subentenda-se: “Você não é um deles”) e, de Jonathan Kent, a paterna explicação (“Você está aqui por uma razão”. Leia-se: “O humano pode escolher”).

A escolha está feita. Como um semideus, Karl-El retorna a Terra no tempo até o momento anterior à morte da pessoa amada. Num ato divino, ele reafirma o mais humano dos desejos: desfazer a perda do outro. Afirmar o amor pela vida no sentimento capaz de agradecer pelas oportunidades de aprender e exercer afeto. Quando pousa diante da amada ressuscitada, usa o traje do herói, mas seu nervosismo emocionado é o de Clark Kent (como Chris Reeve conseguia essas sutilezas?). A volta das reclamações cotidianas dela o faz suspirar. Sim, tudo continua como antes. Benção.

Sim, tudo que Donner e Reeve conseguem demonstrar é que o amor é o maior poder dos humanos, porque ele não morre. Ele surge nas nuvens para nos inspirar e iluminar. Ele nos desafia a enfrentar os supervilões do cotidiano e apreciar um simples passeio com os entes amados… mesmo que seja apenas andando.

Somos um pássaro? Somos um avião? Não. Somos humanos. E, se quisermos, podemos ser formidáveis!

Sua benção, meu pai.

22 de setembro de 2008

MILTON NASCIMENTO - Festival Tudo É Jazz - Ouro Preto - 2008

Saudações de Ouro Preto.

No fim de semana de 11 a 14 de setembro, aconteceu a sétima edição do Festival “Tudo É Jazz”, na bela cidade colonial. Convidado a participar, apresentando uma oficina de cinema e jazz, essa foi uma coleção de inaugurações: a primeira vez que fui a Minas, a primeira vez que fui à Ouro Preto, a primeira vez que assisti ao festival e a primeira vez que assisti um show de Milton Nascimento.

O verbo inebriar cai bem para descrever o festival mineiro. A impressão é como se o fã de jazz estivesse lendo a Jazztimes ou a Down Beat e as bandas citadas pulassem das páginas. A cabeça gira com tantas possibilidades de sons das apresentações. Sorrisos se multiplicam nas conversas antes e depois dos shows. Sim, diversos festivais estão surgindo ou se consolidando pelo Brasil (e pelo resto do mundo) e, sim, o de Ouro Preto é um dos primeiros a ser citados na lista dos melhores. Impecável nos mínimos detalhes e com uma equipe afiada, que não disfarça o prazer de transformar toda a cidade numa imensa festa. Celebração que acaba com gosto de quero mais. Tão saborosa quanto a culinária mineira.

Pois bem. Era o fim de uma tarde de domingo. O sol se põe através do céu ansioso pela noite que receberá seu cantor mais ilustre. O homenageado do festival. Olhamos o palco, montado na Praça Tiradentes, de frente. Logo atrás dele, o cimo da igreja revela um relógio com um tempo impossível, porque não vai querer passar. As pessoas tomam a praça e fazem crescer a multidão. Uma falha na luz cria um rápido atraso e aumenta a expectativa. Tudo se ilumina. Logo estamos diante de Milton. Penso que os mineiros sabem mesmo receber muito bem.

Minhas fantasias se tornam reais. Quando ouvia o “Beco do Mota”, imaginava um filme (sugerido pelas melodias) que tinha Ouro Preto como cenário. Essa música não é cantada nesse domingo, mas “Ponta de Areia” cria uma ponte mágica que liga as montanhas de Minas ao mar (e, penso, em vez do baiano, por que não o mar do meu Rio de origem). O desafio é proposto na emenda com “Entradas e Bandeiras”. Desafio aceito. Vamos à luta! Milton canta “Encontros e Despedidas” e me faz sentir numa viagem composta de memórias e estados de espírito: amigos, amores, risos, canções. A hora do encontro é também despedida. Bem, se for assim, assim será.

Wayne Shorter e Ron Carter surgem no palco. Dois quintos do quinteto de Miles mostram porque são os melhores. Simples assim (simples?). Só os jazzófilos são capazes de entender o que está acontecendo? Não creio. Uma força nos alerta e justifica essa estranha mania de ter fé na vida.

A cidade colonial, de tantas ladeiras e igrejas, nos aproxima das estrelas. Uma constelação de luzes azuis de celulares, como diamantes sobre um veludo negro, registram cada acorde criado no palco.

Milton, Wayne, Ron. Com certeza.

Olhamos em torno.

Chegamos em nós mesmos.

Estamos em casa.

Fotos: (1) Milton Nascimento e Wayne Shorter, (2) Ron Carter, Milton Nascimento e Wayne Shorter - Ouro Preto - 14/09/2009. Fotógrafa: Andrea Lion (muito obrigado!)

26 de agosto de 2008

CARTA AO TOM 2008


Querido Tom,

Posso te chamar de amigo?

Só estive contigo uma vez, no Restaurante Plataforma, no Leblon (“é o meu escritório!”, você dizia), para uma entrevista para minha apostila de um curso de jazz que ministraria no CCBB, em 1991. Queria equivalentes brasileiros para todas as aulas e você seria observado como um dos compositores de standards que fornecem temas (e que temas!) aos músicos. Marcamos data e hora e lá estava você, sozinho e plácido.

Comecei a entrevista. Minha voz subia oitavas de soprano, tal o meu nervosismo. Entenda: és um herói para mim e estar contigo me deixava perto do pânico. Carinhoso, você pediu que me acalmasse. “Olha, vamos pedir um frango-atropelado e uns chopes. Você relaxa e nós conversamos!”.

Falamos sobre a influência da bossa-nova no jazz, do seu filho Paulo, do Sinatra (ah! Sua infinita paciência em falar de algo que todo mundo perguntava), do talento de Raphael Rabello (que almoçava numa mesa perto) etc.

O dia da sua morte foi muito triste para mim. Chamei de “O Dia Que A Música Morreu” (quando Sinatra faleceu, nomeei como “The Day The Music Died”).

Algumas pessoas não deviam morrer.

Dia 15 de agosto, um sábado, estava parado diante do corpo de Dorival Caymmi, velado na Câmara de Vereadores do Rio de Janeiro. Chorava leves lágrimas salgadas. Dorival foi alguém que não conheci, mas que era um grande amigo. Gênio absoluto (voz, violão, composição) ensinava beleza como modo de vida. Morreu de amor. Só ele mesmo.

Repito: algumas pessoas não deviam morrer.

Estranhamente, enquanto o velava, acho que vi uma porta se abrindo para recebê-lo com um dia de sol.

E, dessa forma, começou uma semana de várias alucinações.

Na segunda, dia 17, como fiel “Kieslowskiano”, fui ao Maison de France assistir à “A Fraternidade É Vermelha” e participar de um debate com a bela Irene Jacob. Como já tinha entrevistado a moça decidi presenteá-la com uma revista, dedicada à bossa-nova, que possuía farto material iconográfico. Seu sorriso desarmante, ao receber o mimo, me colocou imaginando a cantar o “Samba da Benção”, para ela, como um Pierre Barouh cantando para Anouck Aimée em “Um Homem e Uma Mulher”. Ok, sei que essa não foi composta por você, mas também acredito que se divertiria com meu delírio.

Na quinta, dia 21, fui à casa de um bom amigo, em Ipanema (na Nascimento e Silva, veja você) e, junto com outro amigo igualmente bacana, ficamos explorando a “CD-teca” dele. Fazíamos um jogo de cada um ir escolhendo músicas bonitas para tocar. Só MPB das antigas. Nas pausas ouvíamos teus discos, Mestre Tom. Não como música de fundo, mas alimento para o espírito. Música na Nascimento e Silva. Olhava para a noite ipanemense e ela me sorria como uma musa de Vinícius.

Na sexta-feira, dia 22, a realização de um sonho: no Teatro Municipal do Rio assisto ao encontro de Roberto Carlos e Caetano Veloso num show em tua homenagem. No belo cenário, uma foto sua, abençoando aqueles meninos (e teu neto Daniel, ao piano, que, como dizias, “me faz muito gosto”). Perdi totalmente a capacidade de julgar e me entreguei a um torvelinho emocional. Lá estavam, juntos, os cantores que mais mexiam com meus afetos musicais. Caetano, arte completa, cantando tuas músicas como se fossem amores, e Roberto, a pura emoção de um Brasil descoberto em todas as suas vertentes sociais e sentimentais. Artista de força carismática. Mega-star. Voz bonita que se torna à canção (não é pouca coisa não. Pois se esse é o dom de Elvis ou Sinatra…).

Caetano mostra força dramática em “O Que Tinha Que Ser”. Roberto eleva “Por Causa de Você” a píncaros celestes. Ambos encantam com “Tereza da Praia”. Aconchego. É bom estar vivo. Meu sonho de ver esses dois reunidos me deixa num estado de alegria atordoante. Teu amigo Caymmi nos deixara há seis dias. Mas teria deixado mesmo? Pois a beleza teimava em não nos abandonar. Era um legado. Um legado gostoso (como “frango-atropelado”, certo?).

Sai do Municipal como um diapasão de felicidade vibrante. Se um ônibus me atropelasse naquele instante (nunca se sabe) morreria feliz. Cheguei em casa cantando “Chega de Saudade”. Estava embevecido de entusiasmo. Passei o dia seguinte falando, para todos com a paciência de me ouvir, que “tinha passado por um dos melhores momentos da minha vida” e que “tinha assistido o melhor show da minha vida”.

Bem, estava certo na primeira afirmativa, e errado na segunda.

Porque domingo, dia 24, estava para chegar.

E se os filhos musicais eram maravilhosos, o pai seria monumental.

Tom, não sei se conseguiria descrever o que foi o show do João Gilberto para mim. Sei que você conseguiria. Puxa! Juntos vocês forjaram tanto encanto!

Mas eu não estava preparado para o que ia assistir. Só conhecia João através de discos, filmes e especiais de TV. Ambientes controlados, registrados, sem riscos. E João ao vivo é risco. Como um artista andando sobre uma corda de violão, suspensa num picadeiro composto de sonho (mais uma alucinação? Acho que não), a voz e o instrumento, unificados num único ser mitológico, desenham perfeição incomodada por cada tosse, toque de celular e ranger de cadeira. A tensão cresce em cada sílaba, em cada dedilhar, na emissão, fraseado, divisão rítmica. Estamos conscientes do tempo e libertos dele, num paradoxo que nos torna eternos. João parece conter um início de choro ao falar de Caymmi. João faz o Municipal cantar “Chega de Saudade” (alucinação real. Sonho concreto). João erra o final de uma música e sorri como um menino, pego em molecagem. João mostra bom humor e felicidade. Homenageia seus queridos. Nos prende em uma memória permanente de gratidão. Na alma o show prosseguirá para sempre.

É bom estar vivo.

Saio do Municipal cercado do calor humano de amigos. Todos abençoados. Agradeço por aquele ônibus não ter me acertado, porque agora posso falar sobre o melhor show da minha vida. Olho para a Câmara de Vereadores, ali perto, e vejo que você e Caymmi sorriem e acenam. Os olhos marejam. Alucinação final de uma semana alucinante.

Sou deixado em casa, transfigurado. Dessa vez entro quieto. Sento-me sozinho em meu quarto e fico escutando a música do silêncio da noite.

Uma bela música.

Encerro aqui, Mestre Tom. Receba esse seu irmão Dorival com o canto de pássaros, compostos por você ou Pixinguinha. Faça uma competição de sorrisos entre seus amigos Caymmi e Ciro Monteiro (páreo duro). Sentem numa nuvem e comparem o azul do céu com o do mar.

Enfim, façam tudo aquilo que vocês nos ensinaram a amar.

Um beijo infinito desse

Soneto

Foto: João Gilberto no Municipal, RJ - 24/08/2008 - Fotógrafo: Wilton Junior/AE