26 de agosto de 2008

CARTA AO TOM 2008


Querido Tom,

Posso te chamar de amigo?

Só estive contigo uma vez, no Restaurante Plataforma, no Leblon (“é o meu escritório!”, você dizia), para uma entrevista para minha apostila de um curso de jazz que ministraria no CCBB, em 1991. Queria equivalentes brasileiros para todas as aulas e você seria observado como um dos compositores de standards que fornecem temas (e que temas!) aos músicos. Marcamos data e hora e lá estava você, sozinho e plácido.

Comecei a entrevista. Minha voz subia oitavas de soprano, tal o meu nervosismo. Entenda: és um herói para mim e estar contigo me deixava perto do pânico. Carinhoso, você pediu que me acalmasse. “Olha, vamos pedir um frango-atropelado e uns chopes. Você relaxa e nós conversamos!”.

Falamos sobre a influência da bossa-nova no jazz, do seu filho Paulo, do Sinatra (ah! Sua infinita paciência em falar de algo que todo mundo perguntava), do talento de Raphael Rabello (que almoçava numa mesa perto) etc.

O dia da sua morte foi muito triste para mim. Chamei de “O Dia Que A Música Morreu” (quando Sinatra faleceu, nomeei como “The Day The Music Died”).

Algumas pessoas não deviam morrer.

Dia 15 de agosto, um sábado, estava parado diante do corpo de Dorival Caymmi, velado na Câmara de Vereadores do Rio de Janeiro. Chorava leves lágrimas salgadas. Dorival foi alguém que não conheci, mas que era um grande amigo. Gênio absoluto (voz, violão, composição) ensinava beleza como modo de vida. Morreu de amor. Só ele mesmo.

Repito: algumas pessoas não deviam morrer.

Estranhamente, enquanto o velava, acho que vi uma porta se abrindo para recebê-lo com um dia de sol.

E, dessa forma, começou uma semana de várias alucinações.

Na segunda, dia 17, como fiel “Kieslowskiano”, fui ao Maison de France assistir à “A Fraternidade É Vermelha” e participar de um debate com a bela Irene Jacob. Como já tinha entrevistado a moça decidi presenteá-la com uma revista, dedicada à bossa-nova, que possuía farto material iconográfico. Seu sorriso desarmante, ao receber o mimo, me colocou imaginando a cantar o “Samba da Benção”, para ela, como um Pierre Barouh cantando para Anouck Aimée em “Um Homem e Uma Mulher”. Ok, sei que essa não foi composta por você, mas também acredito que se divertiria com meu delírio.

Na quinta, dia 21, fui à casa de um bom amigo, em Ipanema (na Nascimento e Silva, veja você) e, junto com outro amigo igualmente bacana, ficamos explorando a “CD-teca” dele. Fazíamos um jogo de cada um ir escolhendo músicas bonitas para tocar. Só MPB das antigas. Nas pausas ouvíamos teus discos, Mestre Tom. Não como música de fundo, mas alimento para o espírito. Música na Nascimento e Silva. Olhava para a noite ipanemense e ela me sorria como uma musa de Vinícius.

Na sexta-feira, dia 22, a realização de um sonho: no Teatro Municipal do Rio assisto ao encontro de Roberto Carlos e Caetano Veloso num show em tua homenagem. No belo cenário, uma foto sua, abençoando aqueles meninos (e teu neto Daniel, ao piano, que, como dizias, “me faz muito gosto”). Perdi totalmente a capacidade de julgar e me entreguei a um torvelinho emocional. Lá estavam, juntos, os cantores que mais mexiam com meus afetos musicais. Caetano, arte completa, cantando tuas músicas como se fossem amores, e Roberto, a pura emoção de um Brasil descoberto em todas as suas vertentes sociais e sentimentais. Artista de força carismática. Mega-star. Voz bonita que se torna à canção (não é pouca coisa não. Pois se esse é o dom de Elvis ou Sinatra…).

Caetano mostra força dramática em “O Que Tinha Que Ser”. Roberto eleva “Por Causa de Você” a píncaros celestes. Ambos encantam com “Tereza da Praia”. Aconchego. É bom estar vivo. Meu sonho de ver esses dois reunidos me deixa num estado de alegria atordoante. Teu amigo Caymmi nos deixara há seis dias. Mas teria deixado mesmo? Pois a beleza teimava em não nos abandonar. Era um legado. Um legado gostoso (como “frango-atropelado”, certo?).

Sai do Municipal como um diapasão de felicidade vibrante. Se um ônibus me atropelasse naquele instante (nunca se sabe) morreria feliz. Cheguei em casa cantando “Chega de Saudade”. Estava embevecido de entusiasmo. Passei o dia seguinte falando, para todos com a paciência de me ouvir, que “tinha passado por um dos melhores momentos da minha vida” e que “tinha assistido o melhor show da minha vida”.

Bem, estava certo na primeira afirmativa, e errado na segunda.

Porque domingo, dia 24, estava para chegar.

E se os filhos musicais eram maravilhosos, o pai seria monumental.

Tom, não sei se conseguiria descrever o que foi o show do João Gilberto para mim. Sei que você conseguiria. Puxa! Juntos vocês forjaram tanto encanto!

Mas eu não estava preparado para o que ia assistir. Só conhecia João através de discos, filmes e especiais de TV. Ambientes controlados, registrados, sem riscos. E João ao vivo é risco. Como um artista andando sobre uma corda de violão, suspensa num picadeiro composto de sonho (mais uma alucinação? Acho que não), a voz e o instrumento, unificados num único ser mitológico, desenham perfeição incomodada por cada tosse, toque de celular e ranger de cadeira. A tensão cresce em cada sílaba, em cada dedilhar, na emissão, fraseado, divisão rítmica. Estamos conscientes do tempo e libertos dele, num paradoxo que nos torna eternos. João parece conter um início de choro ao falar de Caymmi. João faz o Municipal cantar “Chega de Saudade” (alucinação real. Sonho concreto). João erra o final de uma música e sorri como um menino, pego em molecagem. João mostra bom humor e felicidade. Homenageia seus queridos. Nos prende em uma memória permanente de gratidão. Na alma o show prosseguirá para sempre.

É bom estar vivo.

Saio do Municipal cercado do calor humano de amigos. Todos abençoados. Agradeço por aquele ônibus não ter me acertado, porque agora posso falar sobre o melhor show da minha vida. Olho para a Câmara de Vereadores, ali perto, e vejo que você e Caymmi sorriem e acenam. Os olhos marejam. Alucinação final de uma semana alucinante.

Sou deixado em casa, transfigurado. Dessa vez entro quieto. Sento-me sozinho em meu quarto e fico escutando a música do silêncio da noite.

Uma bela música.

Encerro aqui, Mestre Tom. Receba esse seu irmão Dorival com o canto de pássaros, compostos por você ou Pixinguinha. Faça uma competição de sorrisos entre seus amigos Caymmi e Ciro Monteiro (páreo duro). Sentem numa nuvem e comparem o azul do céu com o do mar.

Enfim, façam tudo aquilo que vocês nos ensinaram a amar.

Um beijo infinito desse

Soneto

Foto: João Gilberto no Municipal, RJ - 24/08/2008 - Fotógrafo: Wilton Junior/AE