25 de março de 2011

LIZ & RICHARD – RICHARD & LIZ


(dedicado à amiga Sandra Talarico)

Não acredito mais em destino. Só acredito no acaso.

E o encontro é a forma mais fascinante de acaso.

Ora, se não foi por acaso que, nessa terça feira (22 de março), meu irmão, sabendo da minha profunda admiração pelo recém falecido gênio das trilhas-sonoras, John Barry, me presenteou com a caixa de CDs JOHN BARRY REVISITED que contém réplicas em miniatura de quatro LPs raros do mestre. Entre elas, um disco totalmente desconhecido para mim: ELIZABETH TAYLOR IN LONDON, com as músicas originais de um especial para televisão de 1963. A inglesa, filha de pais americanos, retornava ao local do nascimento para celebrá-lo. Como era de se esperar, a música de Barry envolve a suave voz da atriz com a paixão de um bom amante.

Na manhã seguinte, acordo e, de pronto, verifico e-mails. Entre eles, o doce pedido de uma amiga querida (à qual esse texto é dedicado) para que o Bystander prestasse tributo à Elizabeth Taylor.

Foi assim que soube que a voz que me encantara na madrugada anterior havia partido.

Ouví-la na noite da sua morte foi uma das provas da magia do acaso.

Existe muito para se falar sobre Liz. Mas peço que me deixem continuar sendo extremamente pessoal. Explico. A atriz protagonizou a cena que considero o mais perfeito registro de se “estar apaixonado” que o cinema já criou. A cena é carteirinha de cinéfilo. Em “Um Lugar Ao Sol”, Montgomery Clift está quase explodindo de paixão, dançando com ela em um baile, e decide chutar o balde e se declarar. A moça se desfaz em torvelinhos. Se permite girar nos sentimentos até gritar baixinho (é possível) que estavam sendo vistos. Os dois correm para uma varanda e, graças a uma série de closes soberbos, temos o rosto mais lindo, da história desse rosto mais lindo, se perdendo na confirmação ao rapaz de que a paixão é recíproca. Admito. Esse parágrafo é patético na sua vã tentativa de descrever o indescritível. Mesmo poetas, músicos, pintores… Todos patéticos. Nada descreve, representa ou explica uma paixão. Uma paixão se vive. Simples assim (simples?). Mas o quão perto essa cena chegou da coisa real... O quão perto…

Liz atuou no seu especial de TV londrino. E um ano depois, através de um casamento, mostraria ao mundo o que ERA uma paixão.

Porque quero falar de Elizabeth Taylor e de Richard Burton.

Pois foi em 1961, que um Eddie Fischer (para os nerds: o pai de Carrie Fischer) voou em pânico para o set de filmagem, em Roma, de CLEOPATRA, porque a coisa estava pegando fogo. E não era novamente a cidade, e sim sua esposa e a outra estrela do filme. Viagem inútil. Liz e Dick tinham se encontrado. Ambos estavam casados? Um detalhe para se resolver. Mais duro para Richard, que foi castigado pela separação ao ter que aguentar ser chamado de “Mr. Cleopatra” por algum tempo.

¨Tenho sido incontávelmente sortudo na minha vida, mas a maior de todas as sortes tem sido Elizabeth… Ela é uma amante-companheira selvagem e excitante; ela é tímida e esperta; ninguém a faz de boba; ela é uma atriz brilhante; linda para além dos sonhos da pornografia… E ELA ME AMA!”

Burton escreveu, em 1968, essa declaração no seu diário.

Precisa dizer mais alguma coisa?

Liz contou, no primeiro rascunho da sua biografia (depois a passagem foi removida, mas já era tarde) que Eddie, derrotado, foi até o Porto San Stefano, refúgio europeu dos amantes (como se fosse possível se esconder), com uma arma. Ela o recebeu no portão. Ele apontou a pistola para a cabeça dela e disse: “Não se preocupe! Não vou atirar! Você é bonita demais para eu fazer isso!” Ao recordar o incidente, o cantor, aos 81 anos, sentenciou: “O passado é um bom f.d.p…”

Frases. Por sua vez Dick contava que viu Liz pela primeira vez em 1952, na beira de uma piscina. Ela tomava sol e lia. Foi durante uma festa, na primeira visita do galês à Hollywood. Ele olhou a moleca e a achou tão impossívelmente bonita que começou a rir. Saiu, deixando a garota amuada. Quem era o bonitão grosseiro? Em Cinecittà, Elizabeth estava disposta a não virar mais uma marca no cinto do sujeito. Na cara de pau, Burton se aproximou e disse uma única frase: “Alguém já lhe disse que você é muito bonita?”

Pronto.

Nas filmagens, uma cena de beijo precisou de várias tomadas, e os beijos ficavam cada vez mais longos. Joe Mankiewicz, o diretor, se cansou daquela brincadeira dos pombinhos e apenas gritou: “Ok! Valeu! Terminou!”. Vendo que suas ordens não surtiam efeito, se aproximou dos beijoqueiros e disse impaciente: “As crianças preferem que eu grite ‘Corta’?” Vendo que a frase não os afetava, arrematou: “E se eu dizer que está na hora do almoço?”

Liz e Dick se casaram em março de 1964 (boa data). A lua de mel foi no Canadá. Seu retorno à Boston foi monumental. Como se protegessem um casal composto de Beatles, os policiais eram derrubados na rua pela multidão ensandecida. Quando eles conseguiram chegar ao elevador, ela tinha perdido tufos arrancados do seu cabelo e sua orelha sangrava por conta de um brinco roubado enquanto ele tinha perdido todo o lado direito do terno.

No mundo atual, onde a celebridade se tornou profissão, pode ser difícil para alguns entenderem as diferenças entre as crias do star system dos grandes estúdios de antigamente e os abundantes vazios propalados por algumas assesorias de imprensa de hoje (é claro, existem exceções. Sempre existem exceções). Não estamos falando de pessoas plastificadas em curralzinhos vips. Estamos falando de um casal de carne e osso numa década de histeria (vide os Beatles). O mundo não era o bastante para a paixão desse filho de mineiro de carvão. Sua voz de barítono o tornava um dos melhores intérpretes de Shakespeare (alguns dos amantes do bardo o desprezavam por ele “desperdiçar” seu talento em filmecos hollywoodianos. Bem, sempre se pode encontrar alguma atriz bonita em Hollywood, na beira de uma piscina). E, ainda por cima, vinha recém-saído do retumbante sucesso do musical CAMELOT. O mundo não era o bastante para a paixão dessa bela atriz que vinha partindo corações desde a adolescência com seus olhos de cor única e seu talento cristalino como água. Nos anos sessenta, não se enganem, não foram Jack e Jackie Kennedy. Não. A chama brilhava em outra parte. O que alguns viviam em alcovas, os dois alardeavam. Alarde que se propagou até os anos setenta.

Fellini tinha criado o termo “paparazzo”, que significa “inseto zumbidor”, e tornado a figura do fotógrafo caçador das intimidades dos famosos algo popular no seu clássico “LA DOLCE VITA”. Essa figurinha, que fica caçando BBBs no Leblon, não existia dessa forma. Foi um marco na representação do consumo da “celebridade”. Para esses fornecedores e seus consumidores, não interessava o que eles faziam na tela, e sim na cama (hoje a coisa até se aprimorou: eles não precisam nem ser artistas, nem coisa nenhuma). Liz e Dick eram um prato cheio. Sexo e quebra pau, jato particular de dez lugares, mansões e propriedades pelo mundo, negócios em todo o planeta, pinturas de Monet, Picasso, Van Gogh, Renoir, Pissarro, Degas, e Rembrandt na parede, um par de Rolls-Royces (o dele prateado e o dela verde), cenas tórridas e declarações românticas (ou não) que nenhum roteirista conceberia. Tudo contrabalaçado pelo indecente prazer da vida simples e sem luxos de Puerto Vallarta, no México. Os atores viviam, no mundo real, o que todos sentados no cinema ansiavam: um romance genuíno, sem amarras e capaz de sacudir o planeta.

E não foi apenas a Terra que sacudiu. Os locais da passagem do furacão-dupla também. Num exemplo, as suites dos hoteis ocupados pelos dois tinham que ter os andares acima e abaixo totalmente pagos e esvaziados para que as brigas e as pazes não incomodassem os outros hóspedes. Onde existe tamanha elegância nas celebridades de hoje? E não estou falando das “boazinhas”.



Elizabeth era a que mais se divertia com as brigas: “Richard perde a calma com um prazer genuíno. É lindo de se ver. Nossas brigas são deliciosas contendas de gritos. E ele é como uma pequena bomba atômica explodindo.”

Ah! O amor!

E jóias! Liz se tornou o graal de um ladrão de classe. Possuí-las parecia uma tentativa dela de obter rivais para os seus olhos. Inútil. As pedras ficavam humilhadas. O apaixonado Burton a presenteou com o diamante Krupp de 33.19 quilates (com o valor corrigido para hoje, dois milhões de dólares). À ele se seguiu o Diamante Cartier. Valor: um milhão de dólares. Modesto. Dick o disputou com Onassis. Após a vitória, orgulhoso declarou: “Queria muito a pedra mais incomparavelmente encantadora para a mulher mais incomparavelmente encantadora. Não podia permitir o desperdício dela ir parar nas mãos de uma Jackie Kennedy ou Sophia Loren. Ia ter um surto!” Desse ponto, então, a rocha passou a ser chamada de “The Taylor-Burton diamond”. Bonito não? Mas o ator também usava sua vasta imaginação para talhar os insultos mais apurados. Seu apelido para Liz era “Twmpyn”, palavra galesa que significa “caroço grande”. Chorem românticos!

Esse casamento não podia durar. Filho de alcoólatra, Dick podia acabar com duas garrafas de vodka em um dia. Liz tentava não ficar atrás. Resultado: um casal com severo problema com álcool. Não podia durar.

O divórcio se deu em 1974. Sintomáticamente, no dia da independência americana. Um quatro de julho cheio de fogos. “Você não pode ficar jogando barras de dinamite o tempo todo em cima do outro sem esperar que alguma exploda um dia!”, declarou o ator na ocasião. Liz levou as obras de arte, a mansão mexicana… e as jóias. Em 1975, lá estavam prontos para “recasar”. Burton declarou (fingiu? Que atuação!) estar com um câncer e deixou “vazar” cartas de amor para ela. Batata! O novo casamento ocorreu em Botswana, em outubro (bom mês). Ele jurou parar de beber. E se esforçou muito. Tudo bom. Tudo bem

Quatro meses depois estavam separados novamente.

Liz casou-se com um senador (por seis anos. Sua união mais calma), e se livrou da bebida e das pílulas. Burton, por sua vez, largou a garrafa graças ao apoio (e eventual casamento) fornecido pela modelo Susan Hut.

A saúde do ator estava seriamente comprometida. Liz se casava com a velocidade da escolha de vestidos. Mas o mundo olhava tentando entender como evidentes apaixonados não ficavam juntos. Pobre da pretensão do mundo em tentar entender a paixão.

Além de CLEOPATRA, outras reuniões na tela (trabalharam juntos em onze filmes) oscilavam entre algumas bobagens, algumas decepções (existiria algo mais óbvio do que esse casal explosivo interpretar A MEGERA DOMADA? Mas o filme, infelizmente, ficou abaixo do que poderia ser) e pérolas definitivas, como QUEM TEM MEDO DE VIRGINA WOOLF? Perfeitos. O casal destroçado de Albee caía como uma luva para os dois. Ambos foram indicados para o Oscar. Liz ganhou. Mais um para a sua coleção. O fato de nunca ter sido reverenciado com o prêmio mortificou Richard até o fim. Se auto-intitulava “o ator que mais teve indicaçoes da Academia para não ganhar nenhuma”. Atuar, para os dois, não era uma brincadeira. Muito pelo contrário. Burton costumava se menosprezar se denominando um “manqué” (fracasso no desejar). “Sou um “manqué” em tudo. Um ator manqué, um filósofo manqué, um escritor manqué, e, por consequência, um tédio insuportável.”

(Comentário aparte, mas irresistível: na década de oitenta, o SATURDAY NIGHT LIVE criou um dos seus sketchs mais hilários, trocando os casais da peça e substituindo o casal jovem pelo Principe Charles e a Princesa Diana e o casal agressivo… por Ronald e Nancy Reagan . Impagável!)

Burton escreveu centenas de diários (e muitas cartas dedicadas à Liz). Neles se destaca que a sua principal frustração era não ser escritor. Sobre seu caixão desceu uma cópia do livro de poemas do seu amigo querido, Dylan Thomas (outro contumaz beberrão). Atuar, escrever e amar Elizabeth eram suas paixões.

“Por alguma razão, o mundo parece se divertir conosco! Dois maníacos! Costumo dizer que nós somos o ‘Le Scandale!’ ”

Dick não constatava isso por afetação. Apenas constatava. O último encontro do casal nos palcos se deu no início dos anos oitenta, na encenação de VIDAS PRIVADAS, de Noël Coward. Nenhuma surpresa, uma peça sobre um casal de divorciados. Talvez por esse excesso auto-referente, o público foi condescendente, mas a crítica massacrou o espetáculo. Os tempos já eram outros. Nada mais de CLEOPATRAS. Nomes como Scorsese, Coppola, Cassavetes estavam inventando uma outra Hollywood. O par se descobriu uma súbita relíquia. Nada mais de estrelas no céu e nas telas. Pé no chão. Crepúsculo.

Em cinco de agosto de 1984, na sua residência em Célig, Suiça, Richard Burton sofreu um derrame fatal enquanto dormia. Estava com 58 anos. Quando soube da notícia o surto histérico de Liz foi tão grande que o advogado mexicano que estava na porta giratória de casamentos terminou o noivado ali mesmo e foi para casa. No memorial londrino, a atriz sentou na primeira fila da igreja. A esposa de Burton na época, Sally Hay, arranjou legalmente para que ¨apenas¨ ela, Sally, fosse enterrada ao lado do marido.

Restaram as cartas e os diários. Após voltar de Londres, dois dias depois da morte de Burton, Elizabeth recebeu sua última carta, escrita dois dias antes do falecimento, numa estranha simetria. A manteve escondida por anos, numa gaveta de cabeceira ao lado da sua cama. E aí de qualquer marido que sequer tentasse tocar o envelope. Um dia decidiu, enfim, revelar seu conteúdo. Sem largar o papel, apertado com força, ela leu as palavras que diziam que Richard não se sentia infeliz, mas sabia que tinha sido mais feliz com ela. Afirmava que ninguém jamais poderia compreender o que a união deles tinha sido. Que se pegava, as vezes, refletindo se seria possível existir uma outra chance para eles. Seria possível?

Num contraponto típico do seu humor, Burton, em um dos seus fiéis diários, havia antes registrado um comentário antecipando a sua própria morte… e, para variar, sobre Liz:

“A piada é que eu vou morrer por causa da bebida e ela vai continuar radiante, carregando essa metade do mundo que conquistou por merecimento!”

Sim. Havia um indisfarçável orgulho.

O escândalo não era uma exclusividade deles. Sexo, drogas e rock and roll já serviam de bandeira para a época e quartos de hotel eram destruídos em meio a orgias e bandas pop, estrelas de cinema, monstros como Mason, e excessos que duram até hoje (cada vez mais twittados e patéticos na sua desesperada artificialidade). Então qual a questão aqui?

Richard Burton e Elizabeth Taylor.

Porque o séc.XX testemunhou uma lista de casais inesquecíveis. Frida Kahlo e Diego Rivera, Sinatra e Ava, Marilyn e DiMaggio, Bogie e Bacall, Boris Pasternak e Olga Ivinskaya, John e Yoko, Grace Kelly e o Príncipe Rainier III, Clark Kent e Lois Lane…



Mas nada foi tão irresistívelmente elegante, desnudado, extravasado e irradiado quanto essa “dupla de maníacos”.




Pois que se tenha então aqui, na semana da morte da mulher amada, a lembrança da voz barítona de Richard Burton com a última palavra. Que soe, primeiro em seu galês natal e depois na tradução, a frase que, mesmo separado, ele sempre dedicou à ela:

“ ‘Rwyn dy garu di’n fwy na’r byd ei hunan’ “

“ Eu te amo mais que o próprio mundo!”