29 de janeiro de 2009

VALENTINA


Vamos elaborar um princípio de arquétipos máximos encapsulados numa única mulher. Mas será possível? Existe algo que representa tudo que se sonha? Que sintetiza todas as expectativas? Que comporta todas as fantasias? Para mim essa imagem surgiu, há alguns anos, numa reprise de "La Notte", um dos vértices da "Trilogia da Incomunicabilidade" de Antonioni (que deveria ser uma tetralogia, pois não? "A Aventura", "O Eclípse", "O Deserto Vermelho"? Apesar que o tema também pode ser encontrado em "Blow-Up", "Zabrinskie Point", "Passageiro, Profissão Repórter"... Hum... A verdade é que Antonioni estava sempre falando nisso. E muito bem).

Vendo "A Noite" tarde da noite. Conveniente, não é? Uma cópia caindo aos pedaços da TVE, com aquela dublagem perfeita e pesada, com ar de radionovela típica do início dos anos sessenta. Todas aquelas longas seqüências. Aqueles tempos reflexivos. Marcello Mastroianni (O escritor Giovanno Pontanno) e Jeanne Moreau (Lidia), ambos no auge da beleza física, desfilando seu "ennui" diante de nós. Um casal em estado de decomposição. Uma festa chique onde o preto e o branco da fotografia desafiavam o bicromático dos vestidos e ternos. Um jazz bom e cool ao fundo. O casal se separa e, no final de uma escadaria, Lidia a vê sentada lendo o livro do seu marido, numa forma de passar o tédio.

Valentina...

Valentina que logo chamará a atenção de Giovanno numa partida de "jogar a cigarrilha na laje mais distante do salão". Existencial e contingente (redundância sartreana), Valentina tem um se bastar em si mesma que fascina Pontanno. A filha do anfitrião milionário que quer contratar o escritor para escrever a história da sua companhia (algo como contratar Ítalo Calvino para redigir a história da Ford), Valentina percebe absurdos como esse, nota paradoxos, destrói falsidades com sua clareza. Sua beleza se torna infinita nessa personalidade total. Ela se sabe. Ela se pode. Ela compreende.

Giovanno sofre uma crise existencial que afeta tudo: seus dons criativos, sua vida afetiva. Valentina se mostra mais criativa do que ele. Mas não vê seus dons como "um destino irreversível". Para ela, a lucidez é quase um sofrimento, mas os seres que sofrem ao seu lado merecem um olhar carinhoso. Valentina está livre. E por isso é desejada. E, se o desejo é um jogo, Valentina é o mais belo prêmio.

Mas ela não quer ser prêmio. Valentina não reduz a vida a aspectos e coisas. Valentina não quer mais. Ela é mais. Sua arte é sua vida. Seu olhar agasalha e desnuda. Sua voz triste é segura. Deusa jogada na Terra, parece fascinada com a tolice dos mortais, da qual se ria Puck.

Para Valentina, sentir e viver é coisa de adultos. E ser adulto é muito bom.

Quantas vezes a alça do seu vestido negro desliza pelo ombro perfeito para acariciá-la? Pode-se fazer um jogo com isso. Abra uma garrafa de vinho e tome um gole a cada queda da alça. Ao final do filme, veja o seu estado etílico.

Escrevo isso porque Valentina é a única personagem de ficção pelo qual sou perdidamente apaixonado. Olho para a bela Mônica Vitti e só vejo sua magnífica criatura. Ao final da projeção resta o gosto saboroso do vinho da alça, e a melancólica lembrança de que Valentina não existe.

Então eu volto para o mundo real e me delicio em descobrir Valentinas nas mulheres que encontro. Um olhar. Uma frase. Um jeito de sorrir. Um modo de ler livros sentadas nas escadas…

Um jeito de erguer a alça do vestido sobre o ombro…

(escrito em 15 de Março de 2005)