24 de junho de 2011

“THEY ALL LAUGHED OF DETECTIVE COLUMBO!”




By The Classics - Peter Falk faleceu hoje. O Bystander não tem todas as palavras de gratidão possíveis. Portanto compartilha, aqui, um antigo texto do Bystander-newsletter original dedicado ao tenente justiceiro (sem correções ou atualizações). O que o detetive ensinava era simples: "abram o olho! O peixe graúdo comete o crime e segue aplaudido? Se depender de mim, não!" Quão atual. Sempre.

6 de Outubro de 1998 - Número 4 – Volume 1

O canal USA da NET está dando a oportunidade de comemorar os trinta e um anos do (sem sombra de dúvida) melhor detetive da história da televisão: o impagável tenente Columbo. Todo o domingo desse mês de outubro (sempre às dez da manhã) será exibido um filme dedicado ao personagem que marcou, de modo profundo, a carreira do ator Peter Falk (em ASAS DO DESEJO, de Wenders, os personagens em geral se referem a ele com o nome do astuto tenente). A festa começou no último dia quatro, com a exibição do telefilme RECEITA PARA UM ASSASSINATO (Prescription: Murder) de 1967, baseado na peça de Richard Levinson e William Link.

O filme é uma verdadeira raridade. Tenho a impressão que a última vez que passou por aqui foi na TV TUPI. É delicioso constatar que todos os mecanismos e rituais que fazem o charme de todos os episódios de COLUMBO já estavam presentes na sua gênese teatral e na sua primeira aparição na telinha. São eles, somados a brilhante interpretação de Falk, que fizeram desse seriado algo mais do que um simples jogo de gato e rato policial. Vamos descrevê-los:

Primeiramente nós sempre sabemos quem é o assassino. Como cúmplices, observamos um crime sempre perfeito, bem executado e insondável. Seu perpetror é, com freqüência, alguém acima de qualquer suspeita. Ora pode ser o dono de uma galeria de arte, que quer aumentar a venda da sua coleção de quadros matando o artista, ora pode ser um escritor policial, ao estilo Ellery Queen, que mata o seu parceiro talentoso (na verdade, o real autor dos livros) quando esse decide romper a parceria. São crimes estranhamente adequados para esses tempos de frieza profissional em que estamos envolvidos. Poderia ser esse o motivo da surpreendente atualidade de COLUMBO, mas há mais: existe a atitude paladina desse tenente de sobretudo encardido e charuto empestento, que se recusa a se curvar diante da posição social do criminoso. Os movimentos são sempre:

A) Parecer humilde e um tanto vago;

B) Perturbar com perguntas enervantes e precisas;

C) Deixar claro para o assassino que ele sabe quem é o criminoso, e

D) Aplicar um desmascaramento que corresponda à medida do crime.

A mente analítica de Columbo e a personalidade de sua presa típica foram bem perscrutadas em uma cena de RECEITA PARA UM ASSASSINATO, onde o famoso psiquiatra (interpretado por Gene Berry), um calculista assassino da própria esposa, tem um ácido diálogo (transcrito a seguir) com seu grudento perseguidor. Ambos estão no consultório do doutor, saboreando um Jack Daniel’s. É tarde da noite:

(...).

COLUMBO- Gosta de ler, doutor?

Dr.FLEMING- Gosto sim!

COLUMBO- Contos policiais?

DR.FLEMING- Não! Disso não!

COLUMBO- Ah! Eu adoro! Eu acho bom! Repousante! Mas o problema é: creio que eles não tem nada a ver com a vida real! Digo: o culpado do crime acaba sendo pego! E eu e o senhor sabemos que nem sempre termina assim!

DR.FLEMING- Você não cansa, não é?

COLUMBO- De que?

DR.FLEMING- As insinuações! A mudança de passo! É uma caixa de truques, Columbo! Até esse charuto acessório que você usa!

COLUMBO- Ah! Um charutinho a toa!

DR.FLEMING- (frio) Vou lhe dizer uma coisa sobre você, Columbo! Diz que precisa de um psiquiatra. Talvez precise, talvez não! Mas você é um exemplo perfeito de compensação!

COLUMBO- De que?

DR.FLEMING- Compensação! Adaptabilidade! Você é um homem inteligente, Columbo, mas se esconde fingindo que é algo que não é! Por que? Por causa da sua aparência! Você pensa que nunca acertará por meio da aparência! Por isso faz de um defeito uma virtude: pega as pessoas de surpresa! Elas o subestimam e é assim que você as vence! Como vir até meu consultório agora!

COLUMBO- Puxa! Você me pegou direitinho, doutor! Eu acho que é preciso ter cuidado com o senhor, porque é um bom conhecedor das pessoas!

DR.FLEMING- Agora está tentando a adulação!

COLUMBO- Não, não! Eu estou falando sério mesmo! Isso é bom, doutor! Claro! É a sua profissão e o senhor estudou muitos anos! Mas ainda assim é engraçado: a pessoa senta naquela cadeira por alguns instantes e o senhor sabe tudo sobre ela!

DR.FLEMING- (fleumático) Não é bem assim! Psiquiatria não é um truque de salão!

COLUMBO- Eu não quis dizer isso! Só estava pensando se... Não, não! Isso não é possível!

DR.FLEMING- O que?

COLUMBO- Eu sei que é bem fácil conhecer um paciente, ou alguém que, como eu, esteja bem perto o tempo todo, mas com um indivíduo que não conheça... Um sujeito que nunca encontrou antes... O senhor pode prever as suas reações?

DR.FLEMING- Por acaso tem alguma pessoa em mente?

COLUMBO- Não, não! Ninguém em particular! Só um tipo qualquer!

DR.FLEMING- Como um assassino, por exemplo?

COLUMBO- Bem, já que o senhor tocou nisso! Acho que estamos no mesmo comprimento de onda!

DR.FLEMING- É, eu acho que sim! (pausa) A respeito desse assassino hipotético...

COLUMBO- É, eu não estou falando do tipo de cabeça quente comum, como um sujeito que quebra uma garrafa na cabeça do outro! Eu me refiro ao tipo que prepara a coisa toda, com detalhes, passo a passo! O que sabe o senhor sobre esse tipo de homem, doutor?

DR.FLEMING- Eu devia lhe cobrar! Mas, como está numa base teórica, chamemos a isso de consulta grátis!

COLUMBO- Obrigado!

DR.FLEMING- Falamos de um homem que comete um crime! Não do tipo comum, de um marginal de rua, mas de um projeto! Elaborado! Intelectual! O que sabemos sobre esse homem? Naturalmente ele não é um impulsivo! Ele planeja, calcula, minimiza os riscos! Ele é orientado pela sua mente, não pelas emoções! E é, provavelmente, bem educado também!

COLUMBO- Como, talvez, um homem profissional!

DR.FLEMING- Talvez! De qualquer modo, um homem ordeiro, com olho para o detalhe... E coragem!

COLUMBO- Coragem?!

DR.FLEMING- Certamente! Ninguém se mete numa coisa dessas, seja lá o que possa ser, sem um forte sistema nervoso!

COLUMBO- É! O senhor pode estar certo, doutor! Mas, uma coisa me aborrece: o homem que estamos falando tirou uma vida humana! O senhor não diria que é um anormal?

DR.FLEMING- Por quê? Porque cometeu um ato imoral? A moral é condicionada, tenente! É relativa como tudo mais nos nossos dias! Nosso homem pode ser são, como você ou eu! Matar pode ser repugnante para ele, mas, se é a única solução, ele a usa! Isso é pragmatismo, meu amigo, não insanidade!

COLUMBO- Diga-me, doutor, como se pega um homem como esse?

DR.FLEMING- Não se pega!

COLUMBO- Deve ter razão! Ele parece esperto demais para nós! Mas o que eu digo é que os tiras não são os caras mais vivos do mundo! Claro, temos alguma coisa a nosso favor: somos profissionais... Mas, em todo o caso, esse seu amigo, o assassino, claro, ele é muito esperto! Mas é um amador! Ele tem uma chance de aprender! Só uma! Mas conosco é diferente: é uma profissão! Entende? Nós passamos por isso cem vezes num ano! E lhe digo doutor: é um bocado de prática!

DR.FLEMING- No seu caso isso não o ajudou, não é? Toda essa experiência para chegar à conclusão errada!

COLUMBO- Que quer dizer?

DR.FLEMING- Eu não matei minha esposa!

COLUMBO- Mas eu não disse isso!

DR.FLEMING- Não! É verdade! Insinuou! Insinuar cabe melhor! Mas, se eu matei, e eu disse “se”, você nunca vai conseguir provar!

(...).

Nesse próximo domingo, dia 11, será exibido o segundo piloto: RESGATE DE UM MORTO (Ranson for A Dead Man), de 1971, onde Columbo atormenta a vida de uma advogada assassina interpretada por Lee Grant. Não deixem de assistir! Columbo pode ser considerado tão clássico quanto o Philip Marlowe, de Chandler, ou o Sherlock Holmes, de Doyle. É ver e constatar.

Afinal, se pensarmos em eventos no nosso território nacional, quando um patético pequeno Polegar, após ser esmagado pelo moedor da fama e da falta de talento, vai preso por roubar um vale refeição e um Real para, logo em seguida, ser jogado às feras da cela e da mídia (claro que crime é crime, mas que castigo é pior do que esse?) enquanto um tal Sergio Naya passeia solto por aí!?!!? A vontade que se tem é de gritar: TENENTE COLUMBO, CADÊ VOCÊ?

2 de junho de 2011

SONHOS EM CELULOSE E CELULOIDE

BY THE CLASSICS - The Bystander foi criado como newsletter (não sabe o que é? Pergunte à sua mãe) para ser distribuído para amigos, num mundo pré-blog ou twitter, há muito tempo, quando os mamutes pastavam nas planíces. Como o acervo é grande, a idéia é selecionar alguns dos textos originais para a sua versão blog. Esse foi escrito na ocasião do início do novo milênio e recomendava uma graphic novel e uma série de filmes. O livro foi lançado esse ano, com o nome de SINAL E RUÍDO, pela editora Conrad, e, em 2009, os filmes foram reunidos em uma caixa de quatro DVDs da Versátil. O texto permanece sem atualizações corretivas, para manter o espírito da época. Uma década atrás. Os afetos permanecem. Viva Kris, Neil e Dave. Bom trabalho amigos!

THE BYSTANDER - 20 de Janeiro de 2001 - Numero 1 (Volume 2)

Sobrou um champanhe dessa ulti-ma virada. Vamos abrí-la? Enquanto nosso discreto mordomo Jarvis James cuida de selecionar as taças e gelar a bebida, esse By vai distraindo vocês falando de duas obras que merecem ser citadas nesse “overture” de século novo. São elas uma série de TV e uma graphic novel. Nenhuma delas é recente. Então por quê agora?



Sigam-me pelo corredor dos sonhos (thanks H.Ellison!) e vocês entenderão.


Primeiro a graphic novel: Em 1989, o escritor inglês Neil Gaiman era o nome mais importante do campo dos gibis, graças ao sucesso da revista em quadrinhos SANDMAN, onde uma mitologia fantástica, representada por uma família de seres eternos, encantava os leitores em histórias com fortes raízes literárias (sua fantasia sobre as possíveis “origens” da peça SONHO DE UMA NOITE DE VERAO, foi a primeira história em quadrinhos a ganhar o prêmio máximo do World Fantasy Award). Todo esse prestígio motivou a revista inglesa THE FACE a convidar Gaiman e o artista gráfico Dave McKean (responsável pelas magníficas capas da SANDMAN) para criarem uma história original que seria publicada em capítulos. Convite feito. Convite aceito.

O resultado foi SIGNAL TO NOISE.

A série teve boa repercussão do público e da crítica especializada em quadrinhos. Ficou por ai. Foi reunida em um único volume pela editora Dark Horse, em 1992. Vendeu sem grandes estardalhaços. E foi tudo.

Esse Bystander lamenta que SIGNAL TO NOISE tenha ficado uma obra tão obscura para um público maior. Porque é um trabalho e tanto. E muito pertinente para esse momento histórico. Senão, vejamos do que se trata:

Um prestigiado diretor de cinema de 60 anos, ganhador de prêmios como a palma de ouro do Festival de Cannes, tem uma idéia para o seu próximo filme: o Apocalipse, direcionando nossos olhos para o dia 31 de Dezembro de 999 DC, em uma pequena vila num lugar indeterminado na Europa, onde todos têm certeza de que o fim está próximo. Mostrar suas reações, seus dramas. Mostrar a humanidade diante de uma certeza devastadora. Nas mãos de um diretor perfeito como ele, uma futura obra-prima.

Mas …

Em uma visita ao médico (coisa que ele sempre detestou) para tratar de algo bobo, os exames revelam um tumor inoperável. Nosso diretor tem poucos meses de vida. Não haverá filme, pois nada foi sequer escrito. Uma depressão profunda se instala.

Porém …

Algo acontece. Automaticamente. Impulsivamente. Nosso diretor começa a escrever o roteiro. Sem arroubos dramáticos de afirmação da vida sobre a morte. Apenas uma obra lançada no papel. Onde o fim do mundo das pessoas naquela vila é confrontado com o fim da vida daquele artista que sabe que ninguém vai morrer naquela noite milenar. Somos colocados diante do Apocalipse de todos nós. Ou talvez não…

Sobre a noite de século-novo que ele não verá e sobre sua condição pessoal nesse mundo que se fragmenta, nosso diretor escreve: "Lá estarão milhares e milhares de pessoas. Todas rindo Todas gritando. Pegas na alegria de serem humanas. De estarem experimentando a vida naquele momento, sabendo que, se foram tão longe até ali, talvez haja esperança para se ir mais além! E eu não verei nada disso. Os críticos costumavam dizer que os meus filmes eram tristes. E eu concordava com eles. Mas agora já não tenho tanta certeza. Não sei. Vivemos em uma sociedade que guarda suas visões utópicas nos comercias de TV. Visões mágicas de um mundo hospitaleiro impossível. Povoado por pessoas atraentes com luzes nos olhos. Homens, mulheres e crianças. Onde ninguém morre. Onde tudo o que se precisa é um produto barato e fácil de conseguir: um pacote de amendoim salgado ou um limpador de tapetes a vapor. Tudo para trazer uma felicidade imediata e não diluída. Nos meus mundos as pessoas morriam e eu me achava honesto, achava que estava dizendo a verdade. Eu achava, mas eles eram atores e se fingiam de morto. E essa dor no meu peito é como um soco de raiva. Raiva pelo meu corpo me trair. Raiva pelo meu mundo, pelos meus sonhos e pela minha vida não seguirem pela eternidade. Raiva porque o melhor que eu podia ter criado ficou na minha cabeça. Tudo o que eu fiz de errado seria corrigido no próximo filme, que seria sempre o que eu faria melhor. Se eu tivesse tempo.”

E ele continua escrevendo o roteiro. Somos convidados a assistir um filme que jamais será feito, porque só existe na cabeça do seu moribundo criador, que observa sua parede coberta de fotos de desconhecidos, que se tornam as figuras principais nesse exercício da arte na mente. Escreve ele:

"Não acredito mais em Apocalipses. Acredito em Apocatástases. Acho que esse pode ser o título para o filme. É um nome problemático para ser pronunciado e quase ninguém sabe o que significa, mas de um jeito ou de outro, é um grande título! A palavra quer dizer: 1) Restauração, restabelecimento, renovação. 2) Retorno a uma condição prévia. 3) (astronomia) Retorno para a mesma posição aparente, complementação de um período de revolução. Gosto disso!"

O roteiro é finalizado e enviado para uma amiga. Nos momentos derradeiros da sua vida, nosso diretor é mandado direto para passar os últimos minutos de 999, ao lado dos habitantes da sua vila imaginaria porque “você deve sempre celebrar com quem você ama!”.

E o final esse By não conta, porque é visual demais, e tudo aqui é só cinqüenta por cento sem a arte fenomenal de Dave McKean. Mas SIGNAL TO NOISE ficou ribombando como um martelo na cabeça desse Bystander, durante essa virada de século.

Uma obra que fala de coisas que alguns gostariam de varrer para baixo de algum tapete, o que seria uma bobagem, pelo seu forte conteúdo poético. De fato, uma abordagem madura e singela sobre a questão da mortalidade (como se esse trabalho só tratasse disso) não chega a ser uma novidade para Gaiman, que criou uma das mais positivas e bonitas representações da morte, na figura de Death, a bela irmã de Dream (em SANDMAN). Humana, carinhosa e terrivelmente simpática, é dela o último sorriso que será visto.

Reforça-se: SIGNAL TO NOISE não é uma obra sobre morbidez. Muito pelo contrário. É sobre viver, criar, amar o próximo, descobrir os outros em nós e celebrar a nossa perplexa humanidade. Características que nos levam ao criador da nossa segunda obra: o diretor polonês Krzysztof Kieslowski.

Falecido por conseqüência de complicações cardíacas, no dia 13 de Março de 1996, Kieslowski poderia muito bem ser o cineasta da história de Gaiman. Relativamente popular, graças ao sucesso de filmes como A DUPLA VIDA DE VERONIQUE e a Trilogia das Cores (A LIBERDADE É AZUL; A IGUALDADE É BRANCA; A FRATERNIDADE É VERMELHA), Kieslowski tinha um olhar extremamente carinhoso sobre o ser humano. Impregnado de detalhes afetivos que reconheciam uma insuspeitada beleza em todos nós. Evidente que isso não era exclusivo dele. Outros diretores também possuíam esse carinho. Bergman, Antonioni, Fellini, De Sica, Wilder etc, Bergman ainda está vivo, assim como Antonioni e Wilder, mas o polonês mesclava uma melancolia com uma atitude redentora que era só dele. O Bystander gostaria de relembrá-lo nesse primeiro mês de milênio, recomendando a todos os leitores o que talvez seja a sua melhor obra: O DECÁLOGO. Dizia Kieslowski:

“O Decálogo é uma das principais fundações éticas da nossa sociedade. Todos estão mais ou menos familiarizados com os Dez Mandamentos, e concordam com eles, mas ninguém presta realmente atenção no que significam. E aí estava a minha proposta: esses filmes precisavam ser influenciados por cada mandamento na mesma medida em que cada mandamento influencia as nossas vidas diárias”.

Filmados para a TV polonesa em 1988, essa série de dez filmes procurava expressar cada um dos Dez Mandamentos como um paradoxo moral diante da complexa ética pessoal de cada indivíduo.

“Sempre procurei pensar em escalas pequenas, e é certo que jamais faria um filme de dimensões gigantescas ou globais. Isso não me interessa porque não acredito que a sociedade exista, ou que as nações existam. Acho que elas apenas estão por ai como um conceito. São 60 milhões de indivíduos franceses, ou 40 milhões de indivíduos poloneses, ou 65 milhões de indivíduos ingleses. Isso existe. Isso importa. Eles são indivíduos. Eles são pessoas.”

O desenho da trama do segundo decálogo serve de exemplo: Dorota, uma bela violinista (interpretada por Krystina Janda) começa a seguir de maneira incansável o médico que esta tratando do seu quase desenganado marido. Quer saber com certeza se ele vive ou morre. O medico insiste que um diagnóstico tão preciso é impossível. A perseguição prossegue até que uma estressada Dorota decide revelar ao médico o porque da sua angústia. Durante anos, ela e o esposo tentaram ter filhos, sem sucesso. Agora Dorota está enfim grávida, mas de um outro homem. E o dilema é: se o marido sobreviver ela abortaria a criança para não magoá-lo, mas se a morte for inevitável, ela não gostaria de perder o bebê.

Vida e morte dançam na sua cotidiana perplexidade.

“Para dizer a verdade, nos meus filmes, o amor está sempre em oposição aos elementos. Ele cria dilemas. Ele traz sofrimento. Nós não podemos viver com ele, e nós não podemos viver sem ele. Nos colocamos diante desse mistério: estamos sempre procurando por esse amor que nós vemos nos olhos das pessoas que sofrem por amor. O resultado é que ás vezes fica difícil conseguir finais felizes no meu trabalho”.

E o final do episódio descrito acima esse Bystander não conta, para não tirar o prazer de ninguém, mas, creiam-me, ele é surpreendente na sua delicadeza.

A série já foi exibida em cinematecas pelo país e teve uma exibição pública pela Rede Cultura há uns dez anos atrás (creio). Dois filmes que foram feitos para o cinema foram integrados aos oito roteiros originais e tiveram os seus 88 minutos editados para os 53 do formato de cada episódio. Esses dois foram exibidos nos cinemas daqui, sob os títulos de NÃO MATARÁS e NÃO AMARÁS. Alguém se lembra? Gostaram? Pois então pensem em cada um desses filmes multiplicados dez vezes.

Variando entre drama, tragédia, melodrama, comédia ou um simples passeio pelo bairro. Cada episódio é uma pequena jóia de se assistir. E esse Bystander tem o prazer de informar aos seus leitores que surgiu uma nova oportunidade de vê-los. Não é nenhum colosso em termos de acesso, pois é preciso ter um aparelho de DVD (área 1) e saber falar inglês ou polonês, mas isso também não é nenhuma impossibilidade. Mas é algo que merece ser celebrado por qualquer cinéfilo. Acaba de ser lançada, nos EUA, uma caixa com cinco DVDs contendo a série completa (pesquisem na Amazon). É uma boa chance de se levar, numa tacada, uma obra e tanto e poder testemunhar o talento farto de um diretor que, como o da história de Gaiman, tinha um afeto muito grande por cada um de nós.

“Ao acreditar demais na racionalidade, nossos contemporâneos perderam alguma coisa”, reclamava ele.

Os roteiros do DECALOGO foram reunidos em uma edição de 1991 da Faber & Faber, de Londres. Na introdução desse livro o diretor Stanley Kubrick escreveu:

“Eu sempre relutei muito em destacar um único trabalho de um grande cineasta, por achar que isso tende a simplificar ou minimizar o todo da sua obra. Mas, diante desse livro de roteiros feitos por Krzysztof Kieslowski e Krzysztof Piesiewicz, não fica impróprio observar como esses autores possuem essa rara habilidade de dramatizar suas idéias, em vez de apenas falar sobre elas. Fazendo isso, elas ganham um poder adicional de permitir que o público faça as suas próprias descobertas em vez de ser apenas manipulado até elas. E esses dois fazem isso com uma habilidade tão incrível, que você nunca percebe, até ser tarde demais, o quão profundamente elas atingiram o seu coração”.

A graça, talvez, esteja nos pequenos detalhes. O jornalista Christopher Marsh notou bem:

“Nos filmes de Kieslowski, até a coisa mais simples que é observada pela janela pode ter um conteúdo dramático. Talvez isso seja mais bem ilustrado se pegarmos a recorrente personagem da senhora idosa que tenta colocar uma garrafa de vidro no “container” de lixo reciclável, e o seu braço não alcança o topo. Ela apareceu nos últimos quatro filmes do diretor, e as reações dos seus personagens principais eram divergentes diante dessa triste e algo patética imagem, uma anciã tentando, com enorme dificuldade, realizar um simples gesto e criando respostas e emoções muito pessoais. Em A DUPLA VIDA DE VERÔNIQUE (1991), Veronika gostaria de ajudar, mas está fraca demais. Julie, em A LIBERDADE É AZUL, vive apenas no seu auto-isolamento e sequer percebe a situação. Karol Karol, em A IGUALDADE É BRANCA, já envolvido na preparação da sua grande vingança, acha tudo muito engraçado. Somente em A FRATERNIDADE É VERMELHA, surge Valentine, forte, generosa e com compaixão suficiente para um simples gesto de bondade, que é apenas ajudar essa pessoa estranha.”

SIGNAL TO NOISE e O DECÁLOGO. Dois trabalhos que possuem o sentimento que esse Bystander gostaria de compartilhar com todos os leitores. Pois se até mesmo um motorista de táxi for capaz de perceber os nossos sentimentos mais felizes, e ficar feliz por isso, essa bem que poderia ser uma cena de um filme de Kieslowski.

Ou Truffant.

Ou Jean Renoir.

Ou Marcel Carnê.

Ou… Mas ai esta nosso Jarvis James com a champanhe! Por favor, podem se servir!

25 de março de 2011

LIZ & RICHARD – RICHARD & LIZ


(dedicado à amiga Sandra Talarico)

Não acredito mais em destino. Só acredito no acaso.

E o encontro é a forma mais fascinante de acaso.

Ora, se não foi por acaso que, nessa terça feira (22 de março), meu irmão, sabendo da minha profunda admiração pelo recém falecido gênio das trilhas-sonoras, John Barry, me presenteou com a caixa de CDs JOHN BARRY REVISITED que contém réplicas em miniatura de quatro LPs raros do mestre. Entre elas, um disco totalmente desconhecido para mim: ELIZABETH TAYLOR IN LONDON, com as músicas originais de um especial para televisão de 1963. A inglesa, filha de pais americanos, retornava ao local do nascimento para celebrá-lo. Como era de se esperar, a música de Barry envolve a suave voz da atriz com a paixão de um bom amante.

Na manhã seguinte, acordo e, de pronto, verifico e-mails. Entre eles, o doce pedido de uma amiga querida (à qual esse texto é dedicado) para que o Bystander prestasse tributo à Elizabeth Taylor.

Foi assim que soube que a voz que me encantara na madrugada anterior havia partido.

Ouví-la na noite da sua morte foi uma das provas da magia do acaso.

Existe muito para se falar sobre Liz. Mas peço que me deixem continuar sendo extremamente pessoal. Explico. A atriz protagonizou a cena que considero o mais perfeito registro de se “estar apaixonado” que o cinema já criou. A cena é carteirinha de cinéfilo. Em “Um Lugar Ao Sol”, Montgomery Clift está quase explodindo de paixão, dançando com ela em um baile, e decide chutar o balde e se declarar. A moça se desfaz em torvelinhos. Se permite girar nos sentimentos até gritar baixinho (é possível) que estavam sendo vistos. Os dois correm para uma varanda e, graças a uma série de closes soberbos, temos o rosto mais lindo, da história desse rosto mais lindo, se perdendo na confirmação ao rapaz de que a paixão é recíproca. Admito. Esse parágrafo é patético na sua vã tentativa de descrever o indescritível. Mesmo poetas, músicos, pintores… Todos patéticos. Nada descreve, representa ou explica uma paixão. Uma paixão se vive. Simples assim (simples?). Mas o quão perto essa cena chegou da coisa real... O quão perto…

Liz atuou no seu especial de TV londrino. E um ano depois, através de um casamento, mostraria ao mundo o que ERA uma paixão.

Porque quero falar de Elizabeth Taylor e de Richard Burton.

Pois foi em 1961, que um Eddie Fischer (para os nerds: o pai de Carrie Fischer) voou em pânico para o set de filmagem, em Roma, de CLEOPATRA, porque a coisa estava pegando fogo. E não era novamente a cidade, e sim sua esposa e a outra estrela do filme. Viagem inútil. Liz e Dick tinham se encontrado. Ambos estavam casados? Um detalhe para se resolver. Mais duro para Richard, que foi castigado pela separação ao ter que aguentar ser chamado de “Mr. Cleopatra” por algum tempo.

¨Tenho sido incontávelmente sortudo na minha vida, mas a maior de todas as sortes tem sido Elizabeth… Ela é uma amante-companheira selvagem e excitante; ela é tímida e esperta; ninguém a faz de boba; ela é uma atriz brilhante; linda para além dos sonhos da pornografia… E ELA ME AMA!”

Burton escreveu, em 1968, essa declaração no seu diário.

Precisa dizer mais alguma coisa?

Liz contou, no primeiro rascunho da sua biografia (depois a passagem foi removida, mas já era tarde) que Eddie, derrotado, foi até o Porto San Stefano, refúgio europeu dos amantes (como se fosse possível se esconder), com uma arma. Ela o recebeu no portão. Ele apontou a pistola para a cabeça dela e disse: “Não se preocupe! Não vou atirar! Você é bonita demais para eu fazer isso!” Ao recordar o incidente, o cantor, aos 81 anos, sentenciou: “O passado é um bom f.d.p…”

Frases. Por sua vez Dick contava que viu Liz pela primeira vez em 1952, na beira de uma piscina. Ela tomava sol e lia. Foi durante uma festa, na primeira visita do galês à Hollywood. Ele olhou a moleca e a achou tão impossívelmente bonita que começou a rir. Saiu, deixando a garota amuada. Quem era o bonitão grosseiro? Em Cinecittà, Elizabeth estava disposta a não virar mais uma marca no cinto do sujeito. Na cara de pau, Burton se aproximou e disse uma única frase: “Alguém já lhe disse que você é muito bonita?”

Pronto.

Nas filmagens, uma cena de beijo precisou de várias tomadas, e os beijos ficavam cada vez mais longos. Joe Mankiewicz, o diretor, se cansou daquela brincadeira dos pombinhos e apenas gritou: “Ok! Valeu! Terminou!”. Vendo que suas ordens não surtiam efeito, se aproximou dos beijoqueiros e disse impaciente: “As crianças preferem que eu grite ‘Corta’?” Vendo que a frase não os afetava, arrematou: “E se eu dizer que está na hora do almoço?”

Liz e Dick se casaram em março de 1964 (boa data). A lua de mel foi no Canadá. Seu retorno à Boston foi monumental. Como se protegessem um casal composto de Beatles, os policiais eram derrubados na rua pela multidão ensandecida. Quando eles conseguiram chegar ao elevador, ela tinha perdido tufos arrancados do seu cabelo e sua orelha sangrava por conta de um brinco roubado enquanto ele tinha perdido todo o lado direito do terno.

No mundo atual, onde a celebridade se tornou profissão, pode ser difícil para alguns entenderem as diferenças entre as crias do star system dos grandes estúdios de antigamente e os abundantes vazios propalados por algumas assesorias de imprensa de hoje (é claro, existem exceções. Sempre existem exceções). Não estamos falando de pessoas plastificadas em curralzinhos vips. Estamos falando de um casal de carne e osso numa década de histeria (vide os Beatles). O mundo não era o bastante para a paixão desse filho de mineiro de carvão. Sua voz de barítono o tornava um dos melhores intérpretes de Shakespeare (alguns dos amantes do bardo o desprezavam por ele “desperdiçar” seu talento em filmecos hollywoodianos. Bem, sempre se pode encontrar alguma atriz bonita em Hollywood, na beira de uma piscina). E, ainda por cima, vinha recém-saído do retumbante sucesso do musical CAMELOT. O mundo não era o bastante para a paixão dessa bela atriz que vinha partindo corações desde a adolescência com seus olhos de cor única e seu talento cristalino como água. Nos anos sessenta, não se enganem, não foram Jack e Jackie Kennedy. Não. A chama brilhava em outra parte. O que alguns viviam em alcovas, os dois alardeavam. Alarde que se propagou até os anos setenta.

Fellini tinha criado o termo “paparazzo”, que significa “inseto zumbidor”, e tornado a figura do fotógrafo caçador das intimidades dos famosos algo popular no seu clássico “LA DOLCE VITA”. Essa figurinha, que fica caçando BBBs no Leblon, não existia dessa forma. Foi um marco na representação do consumo da “celebridade”. Para esses fornecedores e seus consumidores, não interessava o que eles faziam na tela, e sim na cama (hoje a coisa até se aprimorou: eles não precisam nem ser artistas, nem coisa nenhuma). Liz e Dick eram um prato cheio. Sexo e quebra pau, jato particular de dez lugares, mansões e propriedades pelo mundo, negócios em todo o planeta, pinturas de Monet, Picasso, Van Gogh, Renoir, Pissarro, Degas, e Rembrandt na parede, um par de Rolls-Royces (o dele prateado e o dela verde), cenas tórridas e declarações românticas (ou não) que nenhum roteirista conceberia. Tudo contrabalaçado pelo indecente prazer da vida simples e sem luxos de Puerto Vallarta, no México. Os atores viviam, no mundo real, o que todos sentados no cinema ansiavam: um romance genuíno, sem amarras e capaz de sacudir o planeta.

E não foi apenas a Terra que sacudiu. Os locais da passagem do furacão-dupla também. Num exemplo, as suites dos hoteis ocupados pelos dois tinham que ter os andares acima e abaixo totalmente pagos e esvaziados para que as brigas e as pazes não incomodassem os outros hóspedes. Onde existe tamanha elegância nas celebridades de hoje? E não estou falando das “boazinhas”.



Elizabeth era a que mais se divertia com as brigas: “Richard perde a calma com um prazer genuíno. É lindo de se ver. Nossas brigas são deliciosas contendas de gritos. E ele é como uma pequena bomba atômica explodindo.”

Ah! O amor!

E jóias! Liz se tornou o graal de um ladrão de classe. Possuí-las parecia uma tentativa dela de obter rivais para os seus olhos. Inútil. As pedras ficavam humilhadas. O apaixonado Burton a presenteou com o diamante Krupp de 33.19 quilates (com o valor corrigido para hoje, dois milhões de dólares). À ele se seguiu o Diamante Cartier. Valor: um milhão de dólares. Modesto. Dick o disputou com Onassis. Após a vitória, orgulhoso declarou: “Queria muito a pedra mais incomparavelmente encantadora para a mulher mais incomparavelmente encantadora. Não podia permitir o desperdício dela ir parar nas mãos de uma Jackie Kennedy ou Sophia Loren. Ia ter um surto!” Desse ponto, então, a rocha passou a ser chamada de “The Taylor-Burton diamond”. Bonito não? Mas o ator também usava sua vasta imaginação para talhar os insultos mais apurados. Seu apelido para Liz era “Twmpyn”, palavra galesa que significa “caroço grande”. Chorem românticos!

Esse casamento não podia durar. Filho de alcoólatra, Dick podia acabar com duas garrafas de vodka em um dia. Liz tentava não ficar atrás. Resultado: um casal com severo problema com álcool. Não podia durar.

O divórcio se deu em 1974. Sintomáticamente, no dia da independência americana. Um quatro de julho cheio de fogos. “Você não pode ficar jogando barras de dinamite o tempo todo em cima do outro sem esperar que alguma exploda um dia!”, declarou o ator na ocasião. Liz levou as obras de arte, a mansão mexicana… e as jóias. Em 1975, lá estavam prontos para “recasar”. Burton declarou (fingiu? Que atuação!) estar com um câncer e deixou “vazar” cartas de amor para ela. Batata! O novo casamento ocorreu em Botswana, em outubro (bom mês). Ele jurou parar de beber. E se esforçou muito. Tudo bom. Tudo bem

Quatro meses depois estavam separados novamente.

Liz casou-se com um senador (por seis anos. Sua união mais calma), e se livrou da bebida e das pílulas. Burton, por sua vez, largou a garrafa graças ao apoio (e eventual casamento) fornecido pela modelo Susan Hut.

A saúde do ator estava seriamente comprometida. Liz se casava com a velocidade da escolha de vestidos. Mas o mundo olhava tentando entender como evidentes apaixonados não ficavam juntos. Pobre da pretensão do mundo em tentar entender a paixão.

Além de CLEOPATRA, outras reuniões na tela (trabalharam juntos em onze filmes) oscilavam entre algumas bobagens, algumas decepções (existiria algo mais óbvio do que esse casal explosivo interpretar A MEGERA DOMADA? Mas o filme, infelizmente, ficou abaixo do que poderia ser) e pérolas definitivas, como QUEM TEM MEDO DE VIRGINA WOOLF? Perfeitos. O casal destroçado de Albee caía como uma luva para os dois. Ambos foram indicados para o Oscar. Liz ganhou. Mais um para a sua coleção. O fato de nunca ter sido reverenciado com o prêmio mortificou Richard até o fim. Se auto-intitulava “o ator que mais teve indicaçoes da Academia para não ganhar nenhuma”. Atuar, para os dois, não era uma brincadeira. Muito pelo contrário. Burton costumava se menosprezar se denominando um “manqué” (fracasso no desejar). “Sou um “manqué” em tudo. Um ator manqué, um filósofo manqué, um escritor manqué, e, por consequência, um tédio insuportável.”

(Comentário aparte, mas irresistível: na década de oitenta, o SATURDAY NIGHT LIVE criou um dos seus sketchs mais hilários, trocando os casais da peça e substituindo o casal jovem pelo Principe Charles e a Princesa Diana e o casal agressivo… por Ronald e Nancy Reagan . Impagável!)

Burton escreveu centenas de diários (e muitas cartas dedicadas à Liz). Neles se destaca que a sua principal frustração era não ser escritor. Sobre seu caixão desceu uma cópia do livro de poemas do seu amigo querido, Dylan Thomas (outro contumaz beberrão). Atuar, escrever e amar Elizabeth eram suas paixões.

“Por alguma razão, o mundo parece se divertir conosco! Dois maníacos! Costumo dizer que nós somos o ‘Le Scandale!’ ”

Dick não constatava isso por afetação. Apenas constatava. O último encontro do casal nos palcos se deu no início dos anos oitenta, na encenação de VIDAS PRIVADAS, de Noël Coward. Nenhuma surpresa, uma peça sobre um casal de divorciados. Talvez por esse excesso auto-referente, o público foi condescendente, mas a crítica massacrou o espetáculo. Os tempos já eram outros. Nada mais de CLEOPATRAS. Nomes como Scorsese, Coppola, Cassavetes estavam inventando uma outra Hollywood. O par se descobriu uma súbita relíquia. Nada mais de estrelas no céu e nas telas. Pé no chão. Crepúsculo.

Em cinco de agosto de 1984, na sua residência em Célig, Suiça, Richard Burton sofreu um derrame fatal enquanto dormia. Estava com 58 anos. Quando soube da notícia o surto histérico de Liz foi tão grande que o advogado mexicano que estava na porta giratória de casamentos terminou o noivado ali mesmo e foi para casa. No memorial londrino, a atriz sentou na primeira fila da igreja. A esposa de Burton na época, Sally Hay, arranjou legalmente para que ¨apenas¨ ela, Sally, fosse enterrada ao lado do marido.

Restaram as cartas e os diários. Após voltar de Londres, dois dias depois da morte de Burton, Elizabeth recebeu sua última carta, escrita dois dias antes do falecimento, numa estranha simetria. A manteve escondida por anos, numa gaveta de cabeceira ao lado da sua cama. E aí de qualquer marido que sequer tentasse tocar o envelope. Um dia decidiu, enfim, revelar seu conteúdo. Sem largar o papel, apertado com força, ela leu as palavras que diziam que Richard não se sentia infeliz, mas sabia que tinha sido mais feliz com ela. Afirmava que ninguém jamais poderia compreender o que a união deles tinha sido. Que se pegava, as vezes, refletindo se seria possível existir uma outra chance para eles. Seria possível?

Num contraponto típico do seu humor, Burton, em um dos seus fiéis diários, havia antes registrado um comentário antecipando a sua própria morte… e, para variar, sobre Liz:

“A piada é que eu vou morrer por causa da bebida e ela vai continuar radiante, carregando essa metade do mundo que conquistou por merecimento!”

Sim. Havia um indisfarçável orgulho.

O escândalo não era uma exclusividade deles. Sexo, drogas e rock and roll já serviam de bandeira para a época e quartos de hotel eram destruídos em meio a orgias e bandas pop, estrelas de cinema, monstros como Mason, e excessos que duram até hoje (cada vez mais twittados e patéticos na sua desesperada artificialidade). Então qual a questão aqui?

Richard Burton e Elizabeth Taylor.

Porque o séc.XX testemunhou uma lista de casais inesquecíveis. Frida Kahlo e Diego Rivera, Sinatra e Ava, Marilyn e DiMaggio, Bogie e Bacall, Boris Pasternak e Olga Ivinskaya, John e Yoko, Grace Kelly e o Príncipe Rainier III, Clark Kent e Lois Lane…



Mas nada foi tão irresistívelmente elegante, desnudado, extravasado e irradiado quanto essa “dupla de maníacos”.




Pois que se tenha então aqui, na semana da morte da mulher amada, a lembrança da voz barítona de Richard Burton com a última palavra. Que soe, primeiro em seu galês natal e depois na tradução, a frase que, mesmo separado, ele sempre dedicou à ela:

“ ‘Rwyn dy garu di’n fwy na’r byd ei hunan’ “

“ Eu te amo mais que o próprio mundo!”