4 de novembro de 2009

APENAS IMAGINE...


O ano é 1960. A cidade é Las Vegas. Frank, Dino & Sammy estão no Sands, mas você não quer uma algazarra do Rat Pack. Hoje não. Quer, isso sim, um dry martini tão seco que o vermute é apenas um conceito, e um crooner que compreenda o seu estado solitário. O local, então, é um lounge de cassino com uma mesa próxima ao palco. Ela permite que o solidário cantor te mande uma piscadela e aponte, com os olhos, o sonho feminino desatento na própria beleza. De repente a solidão evapora como o drink. Você tem um amigo no palco e uma possibilidade encantadora sentada na mesa ao lado.


O ano é 2009. A cidade é o Rio de Janeiro. O local é o interior do Vivo Rio. Graças ao fraterno convite de um amigo, você é colocado na primeira fila do show de Tony Bennett. Usando o feitiço da imaginação, vossa pessoa passa a ocupar o cenário descrito no parágrafo acima. Piano, bateria, baixo, guitarra. A voz de Mr.Bennett consola, aconselha, alegra, faz sonhar, entusiasma, medita…


Tony larga o microfone e canta, acompanhado apenas da guitarra, “Fly Me To The Moon”. Estando tão perto do palco, parece que já chegamos à lua.


O último grande cantor de standards, vivo. 83 anos e os olhos de um menino ansioso por alegrar. Cada música tem a sua própria história para ser interpretada. Tony Bennett conhece bem cada uma delas. Na máquina do tempo, redescobrimos que a simplicidade é a forma mais perfeita. E, se no século XXI tudo bipa (tudo!), naquela noite soprando a areia do deserto de Nevada, a miragem do século XX parece formada unicamente do som composto apenas do bem viver.


Simples, não?


O sonho feminino sopra a franja ruiva no alto da testa e sorri enquanto observa os reflexos na bebida. “Ah! Você também gosta dessa canção?”.


Good night, ladies and gentlemen! Sleep well… and drive safely, ok?


(foto: Ricardo Soneto)




20 de julho de 2009

"WE CHOOSE TO GO TO THE MOON!"


"We are not now that strength which in old days

Moved earth and heaven, that which we are, we are,--
One equal temper of heroic hearts,
Made weak by time and fate, but strong in will
To strive, to seek, to find, and not to yield. "
(Ulysses -Alfred Tennyson)

Foi há 40 anos…

Estava em Manaus, no meio de uma praça cheia de gente. Por conta da zona franca local e, pelo conseqüente fascínio por eletrodomésticos importados, foi espalhado um número enorme de televisores em estruturas metálicas desordenadas, que lembravam instalações do coreano Nam June Paik. As imagens em preto e branco eram absorvidas por um público ansioso. A narração lembrava uma partida de futebol. No meio daquela capital cercada de uma floresta densa, estava assistindo o homem pousar na lua.

Lembrava que em 1968, no Rio, antes de embarcar para o Amazonas, minha mãe me mostrara a foto da Terra, obtida pela Apolo 8, estampada na capa de uma Fatos&Fotos. Minha atitude foi de total “e daí?”. Ora, o Thunderbird 3 mostrava a Terra sempre que subia com seus pilotos bonecos para se acoplar na estação Thunderbird 5. Minha mãe me apresentava um milagre e minha infância tratava aquilo como um cotidiano absoluto e resolvido. Viajar no espaço? Bolas! Nós fazíamos isso toda a semana na TV, certo?

E, naquele final de dezembro, os astronautas Borman, Lovell e Anders presenteavam a humanidade com algo jamais visto por qualquer ser vivo: o nascer da Terra no horizonte de outro corpo celeste. Uma visão da verdadeira dimensão da nossa casa no universo. Um mármore azul com faixas brancas. Tão pequeno. Tão bonito. Ilha no céu. Com vida. Conosco. Com tudo.

Anos mais tarde, bem adulto, voltaria a olhar as fotos. E entenderia o significado das imagens. E agradeceria.

Mas voltemos aquele 20 de Julho de 1969. Estava ao lado do meu irmão. Meu pai se postava à nossas costas como um gigante de braços cruzados. Para passar o tempo, me recordava de um documentário de TV, exibido no Rio e assistido antes da saída final, da minha família, para o aeroporto. Nele era descrito a importância da missão Apolo. “Não, garoto! O homem jamais colocou o pé em outro planeta ou satélite! Entendeu agora, garoto?”. Na noite amazonense, os eventos e expectativas iam crescendo até o grande clímax.

Agora! Pé na lua! Bola grande e branca! Gol! Abraçava meu irmão como se a seleção brasileira tivesse feito o mais magnífico dos pontos (mas isso era algo para 1970). Duas crianças vibravam com as imensas promessas iniciadas ali.

Ainda com os braços cruzados, meu pai olhava a explosão de euforia em torno, meneava a cabeça e repetia: “Como as pessoas são bobas! Acreditam mesmo nisso! Americano é fogo mesmo! Engana todo mundo!”. Olhei para ele perplexo. Como não podia acreditar?

De um modo estranho, a descrença dele me ensinou algo sobre o valor dos atos. Passei os anos seguintes vendo o futuro ser demonstrado em outros pousos lunares (o tormento da Apolo 13 foi cuidadosamente escondido, desse fã de astronautas, pela minha mãe) e na beleza do Concorde, a obra mais poética que a tecnologia realizou. Mais recordações: em seu vôo de apresentação mundial, meu pai conseguiu, com o auxílio de um amigo funcionário do antigo Galeão, esconder seus dois filhos em uma kombi, para que eles vissem, de perto, o supersônico repousando na pista noturna. Os seguranças da aeronave tiveram o carinho de permitir o entusiasmo infantil dos meninos que corriam de um lado para o outro observando um Thunderbird real. Era o “Fireflash”, do episódio piloto do seriado de aventuras inglês. Era o maior brinquedo de todos. Céus! Ser adulto tinha que chegar logo! Um mundo fantástico nos aguardava. Iríamos morar na Lua. Iríamos construir mais máquinas tão eficientes quanto bonitas. The best is yet to come.



Em 1981, testemunhei, sozinho, a subida do Colúmbia, o primeiro ônibus espacial. Anos depois ele explodiria, seguindo o destino do Challenger. Um Concorde sofreria um trágico acidente, espalhando destroços e sonhos. Os passos humanos no satélite terrestre já não aconteciam desde o final de 1972. Os baby boomers assistiam seu tão ansiado futuro se tornar um futuro pretérito. A pá de cal foi o vôo derradeiro, NY-Londres, do Concorde, aposentado como o Saturno V. E assim ficou. Se antes olhávamos para uma astronave do tamanho de um edifício de 35 andares, sinal dos tempos, o que era macro virou micro. Em 1969, os computadores do centro de controle em Houston tinham como capacidade de memória… 64k! No mundo dos bilhões de bytes isso soa um misto de loucura e ridículo. Mas, se hoje carregamos a ficção científica no nosso bolso, podemos agradecer o programa espacial por isso? Sem dúvida!

Convenci meu pai da alunissagem de 69, mostrando, há dois anos, um episódio de “From The Earth To The Moon”, série da HBO, que recriava a missão da Apolo 11 (sem surpresas aqui: um presente do meu irmão. Vamos, então, repetir o gol!). Sorrimos como se estivessemos numa máquina do tempo, voltando para aquela noite amazônica. Chorando feliz, papai repetia: “Não fazia idéia! Que bacana! Que bonito!”. Sua crença na reconstituição, um simulacro, foi mais forte do que a descrença no instante real. Minha lição sobre o valor dos atos prosseguia.

Valor dos atos. Costumo sempre afirmar que, para mim, os dois fatos mais importantes do século 20 foram as viagens do homem à Lua e o desembarque das forças aliadas nas praias da Normandia. Os momentos em que, com passos impávidos, demonstrávamos nossa determinação por um futuro melhor. Eramos galantes (por que não?), corajosos e monumentais em nossa humanidade. Nos mostravamos fortes e destemidos. Eramos heróis. Não queriamos apenas ser. Precisávamos ser. Éramos Ghandi, Martin Luther King, ou um homem parado diante dos tanques na Praça da Paz Celestial (para citar alguns). Mas passou o tempo desses homens e das suas naus? Chegamos à praia do hoje. E parecemos, agora, estáticos e meio “tecno-narcisos”, reduzidos na forma (mas com mais capacidade de memória). Será só isso mesmo?

Bem…

Considerem…

Talvez as viagens ainda prossigam na Terra. Olhamos para a Lua. Pensamos nos passos dos doze homens que saltaram das suas naves para continuar inspirando fronteiras no espírito. Graças à eles sabemos o formato real da nossa nave-mãe, o terceiro planeta a partir do Sol. Olhamos a Lua. E se nós andamos naquela pedra prateada e companheira, então somos capazes de tudo. Capazes de tudo mesmo. 3, 2, 1…

Um dia voltaremos à Lua. “Terraformaremos” Marte. Construiremos cidades celestiais. Olharemos, em órbita, os desenhos e os contornos das nuvens e dos continentes terráqueos. Seremos uma civilização cósmica. E nos lembraremos de um homem chamado Armstrong, o Colombo de tudo isso, e sorriremos.

Porque nada disso está em um futuro, mas nesse agora, diante de um computador, e nos momentos posteriores a ele, com nossos gestos, obras, coragens e afetos. Éramos astronautas de ontem? Somos “personautas” do presente. Explorando o humano como corpos celestes. Descobrindo mundos e sentimentos. Pousando passos gigantes na beleza de uma noite de luar, no meio da floresta da vida, entre matas e crateras.

E sabem por que?

Ora!

Houston! Tranquility Base Here! The Eagle Has Landed!”

26 de junho de 2009

RETORNOS




"Incrível como foi necessário apenas um único dia para a década de 70 e a década de 80 morrerem!". (Luiz Eduardo Ricon)

Sei de pessoas que só souberam da morte de Farrah-Fawcett ao abrirem o jornal pela manhã. Lapso de informação perdoável, se considerarmos a escolha do destino: “que a morte do maior ídolo da música pop aconteça na mesma data”.

E de pronto sustentamos que o maior foi mesmo Michael. O argumento é simples: se a sua morte tivesse ocorrido no meio do sucesso de “Thriller”, Michael seria o ídolo maior incontestável. Bem, afirmo aqui, acho que esse óbito ocorreu naquela época. O que se observou, a partir daí, foi à paulatina erosão da sanidade de um gênio. Uma dolorosa morte em vida.

Numa entrevista à suprema sacerdotisa do marketing, Oprah Winfrey, o cantor revelou os tormentos de uma infância de trabalho duríssimo para fazer os magníficos registros pops nos estúdios da Motown (que nos fazem dançar, como gemas sonoras milagrosas, até hoje), e da sua melancolia, de partir o coração, ao olhar o parquinho ao lado do prédio da gravadora e ver as crianças vivendo as brincadeiras e alegrias que seu precoce talento impedia. Um pouco da alma ficava em cada fonograma.

Façam o teste. Escutem “I’ll Be There” e fiquem atentos para o contracanto do seu irmão Jermaine, o segundo Jackson talentoso. O irmão maior, que parece, na música, fornecer apoio ao sofrido irmãozinho. Não foi surpresa que esse fosse o membro do clã dos Jackson escolhido para falar com a imprensa sobre o fim de Michael. Em uma faixa musical o segredo de algo que certamente faltou na vida desse gigante frágil.

Sempre vi as atitudes polêmicas (muito polêmicas) dele como um pedido desesperado de ajuda. E, por toda a alegria que ele nos forneceu, ele merecia essa ajuda. A autodestruição de um artista monumental não é novidade. Algumas são tolas, como a de certas cantoras e cantores atuais (que acham que esse é o caminho para a afirmação do gênio. Bah! Marketing! Marketing! Marketing! Marketing suicida, mas marketing! Marilyn Mason declarou que se cortou 150 vezes com gilete em um único dia! Foi mesmo? Dane-se! Me dê uma arte que preste e não a atitude que só deve ser problema seu!); algumas são rápidas como suas vidas, como foi o caso de Kurt Corbain; algumas graduais, como Elvis. Alguns suportam e a evitam heroicamente, como Sinatra, e alguns são de uma frieza gélida, como Madona, que faz (ainda bem, ora bolas) tal possibilidade não ser considerada. Com lampejos brilhantes após “Thriller”, mas apenas lampejos (como se supera o disco mais vendido da história, meu Deus?), Michael se torna um misto de Howard Hughes, Peter Pan e um espetáculo do Grand Guignol. Cada clareada de pele intensificando a dor para quem apenas via, com a amizade de fã, o menino sofrido, ou o mestre do pop fenecer. Senhor da dança. Voz que parecia agarrar a vida e projetá-la para o alto. Pessoa triste jogada no circo de uma mídia que se transforma num moedor de carne humana e que cria palhaços sorridentes que, se não seguirem as regras, vão ser ignorados (se forem pequenos) como um kleenex usado ou (se forem brilhantes), esmagados imparcialmente. Talvez o que tenha chocado o mundo recente com o fenômeno relâmpago de Susan Boyle, nessa rede, foi o fato de que ela apenas chegou na frente do microfone e cantou. Só. Michael fazia isso o tempo todo. Era só cantar. Era só dançar. E o mundo se transformava num lugar melhor. O que se fazia era partindo do seu talento, e não esse monte de som e fúria na cabeça de um idiota, significando (geralmente) nada. Susan parece, agora, estar surtando pela súbita e meteórica celebridade. Eis um conselho para ela: suma! Não deixe essas garras se fecharem em você. Ah! E antes que me esqueça: obrigado pelo talento sem produções milionárias, montes de lasers e dançarinos hiper ensaiados. Apenas sua voz e o microfone.

Apenas o sublime.

O sorriso de Farrah, no clássico pôster do maio vermelho, foi um componente fundamental para a década de setenta ser alegre. Travolta soltava o mesmo sorriso enquanto encantavam nas pistas das discotecas (é muito bom dançar, não?). Maurice White soltava o mesmo sorriso enquanto tornava o mundo uma enorme festa baile. Sabrina, Kelly e Jill. As panterinhas faziam os suspiros dos meninos. Eu sei. Eu era um deles. Compartilho: a primeira menina que eu disse “eu te amo”, sentindo um amor genuíno (juro!), se parecia com a Kate Jackson (ok! Ela era mais bonita que a Kate Jackson, mas tinha o mesmo jeito… e penteado). Lembro de Farrah ser a Farrah-Fawcett Majors, por conta de ser casada com “o homem de seis milhões de dólares” Stevie Austin… digo… Lee Majors. E que todos eram apaixonados por ela. Aquele penteado de camadas era tão copiado que parecia que algumas mulheres já nasciam com ele. Os anos setenta eram refrescantes como um mergulho na Venice Beach. Num jogo de múltipla escolha, hoje, se tivesse que escolher entre me sentar numa mesa com as quatro protagonistas de “Sex & The City”, que tratam relacionamentos como escolhas aflitas de artigos de Dolce & Gabbana, ou as três charmosas detetives, lá estaria eu oferecendo uma pina-colada para Farrah e com a disposição elétrica de resolver um novo crime (mesmo que as moças me chamassem de Bosley. Oh, well…).

Farrah lutou contra seu câncer por três anos, na injusta agonia de qualquer doença terminal. Assistir dois processos destrutivos, da atriz e do cantor, colidirem no mesmo dia. Observar a justificada exposição maciça da notícia da morte de Michael, entre o discreto sumiço do sorriso faiscante da moça de maio vermelho. Pantera de 77. Menino dos sessenta, garoto dos setenta, gigante definidor criador ampliador explosão atômica dos anos oitenta. O Michael bizarro parecia ir se esvaecendo nas imagens do luto mundial. O antigo Michael, remoçado, enegrecido, de dons vastos inexplicáveis, insiste em seguir dançando, não mais numa jaula sádica de LCD e raios catódicos, mas numa pista de festa eterna. “Onde você estava quando Michael Jackson morreu?”.

Acostume-se com a pergunta.

Retorna o sorriso alvíssimo da moça. Retorna o dançarino exímio, com a voz que cantava a verdade, toda a verdade e nada mais que a verdade.

Espero que Michael chegue criança ao céu e que encontre um parquinho esperando por ele. E, se por ventura eu for até lá também, espero poder, mesmo que por alguns instantes, me sentar num banco, ao lado de uma loura bonita de sorriso maroto, para, juntos, observarmos o cantor num balanço, tentando alcançar um outro céu (num ir e vir enfim livre na inocência) e testemunharmos ele cantar “Never Can Say Goodbye”.

E, pelo universo eterno, uma voz fará todas as estrelas felizes.

29 de janeiro de 2009

Dos Venezianos... Ou Dos Bizantinos...

Corto Maltese anda pelo tórrido deserto norte-africano com Cush, o cushita, e explica:

“…tem de ser na primeira quinta-feira da Lua. Compras um lenço azul, de comprimento médio em nome da rapariga que amas… Faze-lhe um nó, dizendo o versículo 5 do Surate 30, dito 'dos Venezianos' ou, se preferes, 'dos Bizantinos'…”

“…Mas não dás o nó antes de ter recitado todo o versículo… Depois atas o lenço ao teu braço esquerdo, e com esse braço acaricias a rapariga que amas e… Tudo correrá bem.”

“E se ela não quer que eu a acaricie?”, pergunta Cush.

Responde o marinheiro: “Então mudas de rapariga… Há tantas…”

(Das AVENTURAS DE CORTO MALTESE – AS ETIÓPICAS (Outros Romeus e Julietas) – Hugo Pratt – Casterman Ed.)

VALENTINA


Vamos elaborar um princípio de arquétipos máximos encapsulados numa única mulher. Mas será possível? Existe algo que representa tudo que se sonha? Que sintetiza todas as expectativas? Que comporta todas as fantasias? Para mim essa imagem surgiu, há alguns anos, numa reprise de "La Notte", um dos vértices da "Trilogia da Incomunicabilidade" de Antonioni (que deveria ser uma tetralogia, pois não? "A Aventura", "O Eclípse", "O Deserto Vermelho"? Apesar que o tema também pode ser encontrado em "Blow-Up", "Zabrinskie Point", "Passageiro, Profissão Repórter"... Hum... A verdade é que Antonioni estava sempre falando nisso. E muito bem).

Vendo "A Noite" tarde da noite. Conveniente, não é? Uma cópia caindo aos pedaços da TVE, com aquela dublagem perfeita e pesada, com ar de radionovela típica do início dos anos sessenta. Todas aquelas longas seqüências. Aqueles tempos reflexivos. Marcello Mastroianni (O escritor Giovanno Pontanno) e Jeanne Moreau (Lidia), ambos no auge da beleza física, desfilando seu "ennui" diante de nós. Um casal em estado de decomposição. Uma festa chique onde o preto e o branco da fotografia desafiavam o bicromático dos vestidos e ternos. Um jazz bom e cool ao fundo. O casal se separa e, no final de uma escadaria, Lidia a vê sentada lendo o livro do seu marido, numa forma de passar o tédio.

Valentina...

Valentina que logo chamará a atenção de Giovanno numa partida de "jogar a cigarrilha na laje mais distante do salão". Existencial e contingente (redundância sartreana), Valentina tem um se bastar em si mesma que fascina Pontanno. A filha do anfitrião milionário que quer contratar o escritor para escrever a história da sua companhia (algo como contratar Ítalo Calvino para redigir a história da Ford), Valentina percebe absurdos como esse, nota paradoxos, destrói falsidades com sua clareza. Sua beleza se torna infinita nessa personalidade total. Ela se sabe. Ela se pode. Ela compreende.

Giovanno sofre uma crise existencial que afeta tudo: seus dons criativos, sua vida afetiva. Valentina se mostra mais criativa do que ele. Mas não vê seus dons como "um destino irreversível". Para ela, a lucidez é quase um sofrimento, mas os seres que sofrem ao seu lado merecem um olhar carinhoso. Valentina está livre. E por isso é desejada. E, se o desejo é um jogo, Valentina é o mais belo prêmio.

Mas ela não quer ser prêmio. Valentina não reduz a vida a aspectos e coisas. Valentina não quer mais. Ela é mais. Sua arte é sua vida. Seu olhar agasalha e desnuda. Sua voz triste é segura. Deusa jogada na Terra, parece fascinada com a tolice dos mortais, da qual se ria Puck.

Para Valentina, sentir e viver é coisa de adultos. E ser adulto é muito bom.

Quantas vezes a alça do seu vestido negro desliza pelo ombro perfeito para acariciá-la? Pode-se fazer um jogo com isso. Abra uma garrafa de vinho e tome um gole a cada queda da alça. Ao final do filme, veja o seu estado etílico.

Escrevo isso porque Valentina é a única personagem de ficção pelo qual sou perdidamente apaixonado. Olho para a bela Mônica Vitti e só vejo sua magnífica criatura. Ao final da projeção resta o gosto saboroso do vinho da alça, e a melancólica lembrança de que Valentina não existe.

Então eu volto para o mundo real e me delicio em descobrir Valentinas nas mulheres que encontro. Um olhar. Uma frase. Um jeito de sorrir. Um modo de ler livros sentadas nas escadas…

Um jeito de erguer a alça do vestido sobre o ombro…

(escrito em 15 de Março de 2005)